Com semblante tranquilo e ares de quem conhece cada metro cúbico das águas marítimas em Laguna e nos municípios vizinhos, o pescador Timóteo Peixoto, 75 anos, aponta para alguns metros ao sul do ilhote do Cardoso, visto à distância, onde há restos de um naufrágio centenário.
A tranquilidade dele contrasta com a movimentação intensa de homens e mulheres carregando peixes entre os barcos e galpões de triagem e preparação dos pescados. Assim como Timóteo, outros moradores do litoral catarinense têm conhecimento da existência do patrimônio submerso, mas os detalhes que os envolvem ou o papel deles para explicar a história do Brasil ainda são desconhecidos pela maioria.
Essa realidade começa a mudar. Pouco a pouco, Santa Catarina está descobrindo o potencial arqueológico subaquático que tem nos 531 quilômetros de costa.
Nos últimos anos, levantamentos e pesquisas se tornaram mais frequentes, não apenas para saber a localização dos naufrágios, mas para conhecer a sequência de fatos que antecederam o infortúnio dos marujos que, sem escolha, lançaram-se às águas séculos atrás, enquanto assistiam suas embarcações submergirem.
A Marinha do Brasil, responsável pelo patrimônio submerso no mar sob jurisdição brasileira, trabalha desde 2011 na elaboração do Atlas dos Naufrágios de Interesse Histórico da Costa do Brasil, com o mapeamento de todas as embarcações afundadas desde o descobrimento, em 1500, até 1950, para contemplar as batalhas da Segunda Guerra Mundial.
Até agora, o levantamento já identificou 2.125 naufrágios em águas marítimas brasileiras, dos quais 234 estão na costa catarinense. O número sobe quando também se considera aqueles ocorridos depois de 1950. Menos da metade deles, porém, têm a localização exata conhecida.
Outras pesquisas, mais concentradas em pontos específicos, já foram ou estão sendo produzidas. São trabalhos ainda incipientes, porém que abriram o caminho para ampliar o conhecimento deste pedaço da nossa história.
Patrimônio cultural na Praia da Cigana
Depois de uma caminhada pela praia que inclui subidas em dunas, Timóteo aponta para o mar na direção do Catalão, uma embarcação espanhola naufragada na Praia da Cigana, em Laguna.
A água escura não permite que seja observado de longe. Por isso, a reportagem cogita ir a nado até o navio soçobrado, mas o pescador veta a ideia.
— Ali a correnteza é muito perigosa — avisa.
Neste ano, o Catalão completa um século de naufrágio. O navio de bandeira brasileira que transportava uma carga proveniente de contrabando afundou em uma noite de 1908.
Alguns moradores dizem que colidiu com a Laje de Campo Bom e veio até a praia para que a embarcação fosse abandonada com segurança para os ocupantes.
Naufragado no início do século 20, o Catalão se enquadra no conceito de patrimônio cultural subaquático, definido pela Unesco como todo resquício de existência humana que esteja submerso por pelo menos 100 anos. Apesar do conhecimento sobre o mar, Timóteo admite não saber de detalhes da embarcação.
— Só sei que está aí desde que me entendo por gente — frisa.
Um santuário cheio de segredos e armadilhas
Navegadores pioneiros na costa catarinense descobriram, da pior maneira possível, as armadilhas das nossas águas. Dotada de um litoral acidentado, capaz de oferecer abrigos às embarcações, mas com vários pontos de leito marinho traiçoeiro para os primeiros navegadores, Santa Catarina concentra alguns santuários de naufrágios.
São navios que afundaram desde o século 16. Entre Florianópolis, São José e Palhoça um conjunto de embarcações dos séculos 16 e 17 que sucumbiram ao Atlântico repousam na região das praias de Naufragados, do Sonho e da Ponta do Papagaio.
Para conhecer suas origens, um extenso trabalho de pesquisa, chamado Projeto Resgate Barra Sul foi conduzido entre 2006 e 2012, autorizado pela Marinha e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Os pesquisadores encontraram restos da carga de uma embarcação que afundou no século 16, incluindo um canhão de bronze, com brasão espanhol, e um conjunto lítico com quatro pedras.
Uma delas trazia o brasão de “Leon y Castilla” e o emblema português, sugerindo que o navio fosse do período da União Ibérica, entre 1580 e 1640. O estudo leva a crer que o sítio arqueológico seja o que restou da nau “La Proveedora”, da armada capitaneada por Diego Flores de Valdés e Pedro Sarmiento de Gamboa.
Intervenções são ameaças
Procurar materiais com valor monetário em sítios arqueológicos, inclusive submersos, é uma atividade que está ganhando adeptos, mas a prática é ilegal. Por lei, qualquer intervenção em bens afundados, inclusive para pesquisa, deve ser autorizada pela Marinha.
Além da extensão da costa brasileira, outra dificuldade na preservação é o desconhecimento que se tem sobre a localização exata dos milhares de naufrágios e outros sítios arqueológicos submersos. Foi isso que motivou a Marinha a dar início ao projeto Atlas dos Naufrágios de Interesse Histórico da Costa do Brasil.
— A importância desse patrimônio para o país é muito significativa, pois são testemunhos materiais do passado da humanidade. São fontes para pesquisas arqueológicas que contribuem para revelar aspectos relacionados à ocupação de parte do litoral brasileiro por povos antigos há milhares de anos, assim como para revelar aspectos relacionados à história da navegação ao longo da costa brasileira, iniciada com a chegada dos europeus em fins do século 15 — explica o capitão de corveta Ricardo dos Santos Guimarães, encarregado da Divisão de Arqueologia Subaquática, vinculada à Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha.
Ele é um dos responsáveis pelo levantamento de todos os naufrágios na costa brasileira datados até 1950. Dos 2.125 registros já identificados pela Marinha, apenas 998 (isto é, 47%) têm ao menos alguma estimativa de localização.
Impasses na legislação
Por lei, toda intervenção não autorizada em sítios arqueológicos constitui crime contra o patrimônio. Mas a legislação brasileira não agrada a maioria dos pesquisadores e já há uma proposta de alteração no Congresso com o objetivo de frear a exploração comercial dos naufrágios, hoje permitida se houver pesquisa, aval da Marinha e o atendimento a uma série de condições.
— A lei permite, por exemplo, o pagamento de recompensa pelos bens culturais submersos que sejam removidos, o que incentiva a “caça ao tesouro” e a retirada irresponsável dos bens do meio em que se encontram, colocando em risco a integridade do patrimônio subaquático brasileiro — expôs a ex-deputada federal maranhense Nice Lobão (PSD), quando apresentou, em 2006, um projeto de lei para tornar mais rígida a legislação.
A proposta de Nice Lobão foi aprovada há mais de dez anos pela Câmara, mas está engavetada no Senado desde dezembro de 2014.
Paralelamente à tramitação do projeto de lei, outra discussão permeia entre os arqueólogos. Em novembro de 2001, a Unesco aprovou a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático, mas o Brasil não é signatário. O motivo é que o país entende que alguns pontos do texto atentam contra a soberania nacional.
— Acredito que a decisão do Brasil em aderir ou não à Convenção deva ser precedida de amplo debate sobre o assunto, com a participação de representantes da Unesco, arqueólogos subaquáticos, representantes da Marinha, do Iphan e Ministério de Relações Exteriores — avalia Guimarães, o encarregado da Divisão de Arqueologia Subaquática, da Marinha.
Na avaliação dele, a Convenção, na prática, submete a realização de projetos de pesquisa arqueológica nas Águas Jurisdicionais Brasileiras à aprovação estrangeira, além de não estabelecer com clareza a quem pertencem os bens submersos que vierem a ser encontrados na “Amazônia Azul” — termo cunhado pela Marinha para se referir ao mar sob jurisdição do Brasil.
Enquanto o país avalia a legislação e a relação com a comunidade internacional, ao mesmo tempo em que vai conhecendo melhor o próprio patrimônio subaquático, os principais aliados na preservação são aqueles que convivem com os naufrágios diariamente e têm uma ligação quase afetiva com eles.
Em Laguna, os pescadores não gostam de ver alguém retirando partes das embarcações para vender como sucata. Por isso evitam informar a localização exata dos navios que repousam em águas mais profundas.
— Às vezes alguém vem perguntar, mas a gente procura não dizer, não — conta Timóteo.
A esquina do Atlântico
A região do Cabo de Santa Marta tem importância histórica para a navegação. Há registros de mapas destacando o local desde 1502, já com o nome que tem hoje. E toda esta relevância tem motivo: ao sul do Cabo, a praia segue praticamente em linha reta até o Rio da Prata, no Uruguai.
Por isso, esse último refúgio para quem navega recebe dos marinheiros o apelido de “Esquina do Atlântico”. Perto dali, uma armadilha já fez inúmeras vítimas. Pouco mais de 20 quilômetros à sudeste do Cabo de Santa Marta, cinco quilômetros mar adentro, existe a Laje de Campo Bom.
Trata-se de um monte de pedra submerso que já foi responsável por colisões de grandes embarcações. O pescador Timóteo Peixoto a conhece bem.
— São 36 metros de profundidade antes de chegar na laje. Sobre ela, são apenas dois metros — explica.
Para evitar novos acidentes, no fim do século 19, deu-se início à construção do Farol de Santa Marta. O bisavô de Timóteo, Eliziário Patrício, tinha 21 anos quando a luz do farol que ajudou a construir acendeu pela primeira vez, no dia 1º de maio de 1890.
O homem moreno e baixo, com 1,66 metros de altura, foi um dos primeiros pescadores da região, até então um local ermo e quase desabitado. Foi Eliziário quem trouxe a primeira professora. Também organizava missas, proibia festas e determinava as regras para a pesca, sempre respeitadas pelos outros pescadores.
Pesquisa que preserva
Foi na região do Cabo de Santa Marta, entre Laguna e Jaguaruna, que o pesquisador Alexandro Demathé, do Grupo de Pesquisa em Educação Patrimonial e Arqueologia (Grupep) da Unisul, de Tubarão, identificou 72 registros de naufrágios, baseado em livros, jornais antigos, sites internacionais e entrevistas com pescadores.
A dissertação de mestrado dele, em 2014, foi um trabalho inédito de levantamento na região.
— Uma característica desses naufrágios é que poucos deles tiveram mortes. Normalmente, o capitão traz a embarcação com problema para perto da costa e todos os ocupantes se salvam — conta.
Atualmente, o Grupep se concentra em uma embarcação que apareceu um mês atrás, soterrada em Jaguaruna. Por enquanto, acredita-se que se trate de um navio alemão de 1896. Demathé explica que o objetivo é dar uma “biografia” ao navio.
(DC, 14/10/2018)
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