Num dia chuvoso de 1997, o carioca Robert Jacob, agente do mercado financeiro, pegou o carro cedo para realizar uma transação urgente no centro do Rio de Janeiro. Não conseguiu ir além da segunda esquina – as ruas da Gávea, onde morava, estavam alagadas.
Em desespero, Jacob deu meia-volta, tirou da garagem a bicicleta usada apenas nos fins de semana, pôs o terno em uma mochila, vestiu short e camiseta e enfrentou a chuva esgueirando-se entre filas de carros parados. Em 40 minutos, estava no centro, a tempo de evitar um mau negócio. Naquele dia, Jacob transformou-se em um ciclista urbano.
Hoje, aos 61 anos, morando ainda mais longe do escritório (no Itanhangá, bairro da zona oeste), Jacob chega em uma hora e meia de pedaladas. Nos piores dias de engarrafamento, o mesmo percurso, feito de carro, pode levar até duas horas e meia.
Jacob ainda pode ser considerado um desbravador. Nas metrópoles brasileiras, quem quer usar a bicicleta como meio de transporte tem dificuldade em encontrar pistas exclusivas e lugares para guardá-la, os chamados bicicletários. Aos poucos, porém, as grandes cidades estão se tornando menos hostis a quem pedala. O movimento pró-bicicleta começou na Europa, espalhou-se por outros países e hoje quase todas as capitais brasileiras têm projetos, públicos ou privados, em favor de um meio de transporte “limpo”, barato e saudável.
O espaço reservado às bicicletas no Brasil quadruplicou desde 2003, segundo dados oficiais. De 600 quilômetros de ciclovias no país inteiro, passou-se a 2.500 – sem falar na adaptação de calçadas e na criação de faixas preferenciais.
Ainda é pouco perto da campeã Holanda, um país que, numa área equivalente à do Estado de Pernambuco, tem 34.000 quilômetros de ciclovias. Mas o número de iniciativas vem crescendo. Cidades tão diferentes quanto Aracaju, Brasília e São Paulo lançaram projetos para bicicletas. Outras, como Praia Grande, em São Paulo, e Curitiba, já são consideradas exemplos.
A capital do Paraná é a campeã brasileira em quilometragem exclusiva para bicicletas (122 quilômetros). Planeja implantar um sistema de aluguel de bicicletas públicas semelhante ao de cidades como Paris e Barcelona, as vedetes dessa onda.
Uma década atrás, Rennes, na França, lançou um programa de transporte público com bicicletas. Tornou-se modelo internacional. Oslo, na Noruega, aderiu à idéia em 2001, depois vieram Estocolmo (Suécia), Londres (Inglaterra), Lyon (França), Copenhague (Dinamarca), Barcelona (Espanha), Berlim e Frankfurt (Alemanha), entre outras.
Quando Paris inaugurou sua versão, o Vélib (abreviatura de “vélo”, “bicicleta”, e “libre”, “livre”), no ano passado, a idéia virou assunto obrigatório de planejadores urbanos do mundo todo. O sistema parisiense consiste em 10 mil bicicletas de ar retrô e selim cor-de-rosa espalhadas por diversos pontos da cidade, disponíveis 24 horas. Mais de 100 mil usuários estão inscritos no projeto. Eles compram uma “cota” diária, semanal ou anual, carregada em um cartão magnético que destranca as bicicletas, estacionadas perto de bocas do metrô.
Quando se chega ao destino, basta estacionar a bicicleta no “paraciclo” mais próximo. Nem tudo funciona perfeitamente. Os usuários tendem a pegar as bicicletas nos bairros mais altos da cidade e deixá-las nas ruas mais baixas, em detrimento de quem precisa delas no alto das ladeiras. Mas a facilidade de uso e o preço do sistema garantiram o sucesso imediato do Vélib. A primeira meia hora de pedal em Paris sai de graça. (Em Londres, o aluguel pode ser pago pelo telefone celular.)
A idéia entusiasmou prefeitos e governadores do outro lado do Atlântico. Nos Estados Unidos, a bicicleta é vista como uma possível solução para os problemas de tráfego urbano. Um exemplo é Portland, no Oregon, que recebeu de uma entidade especializada o título de “cidade mais amiga da bicicleta” nos EUA. Portland quer fortalecer esse status copiando o Vélib.
Na América do Sul, Bogotá, capital da Colômbia, instalou bicicletários em pontos de ônibus. Hoje, tem a maior malha de ciclovias da região. O vice-líder no ranking latino-americano de ciclovias é o Rio. O governo do Estado quer estender as ciclovias ao interior. Anunciou neste ano um projeto para criar nada menos que 1.000 quilômetros de ciclovias à beira de rios e estradas intermunicipais, o maior plano do gênero no Brasil.
Calcula-se que hoje 40% dos trabalhadores do Estado vão ao trabalho de bicicleta ou a pé. “Vamos entrar nessa tendência mundial. É barato, faz bem para a cidade, faz bem para o ciclista. É solução em cima de solução”, afirma o secretário estadual de Transportes, Júlio Lopes.
Outras obras seguem a pleno vapor
A primeira ciclovia do Distrito Federal, de 12,5 quilômetros, foi inaugurada em outubro. O governo distrital planeja entregar 600 quilômetros de pistas até 2010, a um custo de R$ 50 milhões. São Paulo está instalando bicicletários nas estações de trem metropolitano. Quem percebeu a demanda, sete anos atrás, foi Adilson Alcântara, então funcionário da CPTM, a companhia de trens metropolitanos. Hoje, ele é presidente da Ascobike, a Associação dos Condutores de Bicicletas.
“Na estação Mauá, os usuários do trem encostavam as bicicletas em qualquer vão de grade na vizinhança”, diz Alcântara. Ele negociou com a empresa de trens a cessão de um pedaço de um terreno contíguo, onde construiu um bicicletário. Na inauguração, oferecia 624 vagas. Hoje, são mais de 2 mil. O sucesso da idéia levou a CPTM a criar bicicletários próprios. O sistema de trens é uma exceção. No resto de São Paulo é quase impossível achar bicicletários.
“Quando ando pela cidade, preciso guardar a bicicleta na casa de amigos ou pedir favor a comerciantes”, diz o empresário Ernesto Cohn. Iniciativas particulares têm surgido. A seguradora Porto Seguro criou bicicletários gratuitos para seus segurados em alguns estacionamentos conveniados e oferece bicicletas alugáveis em uma das principais avenidas da cidade, a Paulista.
O Brasil tem a sexta maior frota do mundo de bicicletas, cerca de 75 milhões.
Em cidades pequenas, onde o tráfego de automóveis não é problema, as bicicletas sempre foram um meio tradicional de transporte, mesmo sem pistas específicas para elas. Nas grandes cidades, porém, o risco de enfrentar os automóveis soma-se à falta de ruas adaptadas. Segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, na cidade um ciclista morre atropelado a cada quatro dias.
Bikes não poluem, não gastam energia elétrica e aliviam o trânsito – estima-se que numa via por onde passem 450 carros por hora caibam 4.500 pessoas pedalando. As obras de adaptação das ruas à bicicleta são de baixo custo e de manutenção mais simples.
Numa pesquisa feita pelo Ibope em São Paulo em 2007, 34% dos entrevistados declararam que jamais usariam bicicleta no dia-a-dia, mesmo se houvesse incentivos, mas 36% disseram que a construção de ciclovias e bicicletários nos locais de trabalho ajudariam a convencê-los a trocar o carro pela bicicleta nos deslocamentos diários.
Pedalar hoje
As cidades brasileiras ainda não estão adaptadas ao uso diário da bicicleta.
O trânsito Nas grandes cidades, onde o fluxo de automóveis é intenso, não há lugar para o ciclista na maioria das avenidas e ruas mais movimentadas. Como o motoqueiro, ele usa de jogo de cintura para driblar retrovisores, escapar de fechadas e conquistar o respeito de quem está ao volante.
Buracos e imperfeições na pista – O ciclista trepida em uma pista irregular. E a bicicleta sofre as conseqüências rapidamente.
Falta de sinalização específica – Sem orientação, o ciclista não reconhece o caminho mais seguro. Cruzamentos tornam-se perigosos e caóticos para quem nunca tem a preferencial sinalizada.
Ausência de ciclovia – Sem espaço delimitado para o ciclista, os motoristas acham que a rua não é o lugar dele. E a lei diz que a calçada também não é.
Não há vagas – Sem um local para estacionar protegido da chuva, do sol e de ladrões, cada um conta com a própria sorte.
(Revista Época, 08/03/2008. Infográfico do blog Faz Caber e texto publicado no fórum Pedal.com.br,)