Em Florianópolis, 30 mil imóveis estão mapeados como terrenos de marinha, segundo o estudo de remarcação da Linha do Preamar realizado pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU), que gerencia o processo em todo o país. O traçado original, de 1831, tinha caráter de segurança, com o intuito de proteger pelo litoral o território nacional. Já a nova medição, tem apenas função arrecadatória, por meio de taxas anuais pagas por seus proprietários, sob o risco de multas e até de perda dos imóveis. A questão curiosa é que as áreas correspondentes aos terrenos de marinha estão sendo ampliadas por todo o Brasil. Na capital, por exemplo, existiam apenas quatro mil propriedades catalogadas até então, número que aumentou em quase oito vezes com a análise mais recente da SPU.
Um estudo de ortofotocartas, encomendado pelo escritório Thompson Flores Advogados Associados, referência em casos de terrenos de marinha no estado, contradiz o resultado do mapeamento apresentado pela SPU. Basicamente, o estudo da Geoflex comparou digitalmente, por meio de sobreposições, imagens da Ilha de Santa Catarina do período de 1938 a 2001. O resultado diverge do apresentando pela secretaria, apontando centenas de metros equivocados na remarcação, o que envolve erroneamente a maior parte das propriedades inclusas. O geógrafo e advogado especialista na área ambiental, Eduardo Bastos Moreira Lima, explica que “nem mesmo um simples celular com GPS apresentaria tal margem de erro”.
Também para confrontar os dados da SPU, moradores da Praia da Daniela encomendaram um estudo oceanográfico e geodésico. Tanto as pesquisas oficiais quanto a privada seguiram as mesmas normas técnicas e base de informações, mas apresentaram conclusões muito distintas. Ao contrário do traçado da nova demarcação, que engloba 450 residências na Daniela, apenas 3% deste total aparece na delimitação calculada pela empresa Engenharia Oceânica, Costeira & Portuária. Os detalhes deste resultado são sigilosos e serão anexados à defesa administrativa dos moradores.
Inclusive, um mandado de segurança emitido pela Thompson Flores para a Justiça Federal teve recente resultado positivo e inédito na capital. Com o objetivo de suspender a demarcação da Linha do Preamar em uma propriedade no bairro Carianos, no Sul da Ilha, a liminar foi recebida pelo Ministério Público Federal, que instaurou inquérito e se manifestou a favor do pedido ao compreender que o processo de remarcação apresenta possíveis imprecisões. O parecer final depende da decisão do juiz, mas a manifestação do MPF certamente acarretará numa enxurrada de ações de outros proprietários.
A boa notícia é justamente esta: a nova demarcação ainda não foi homologada e, portanto, é provisória. Ou seja, após serem notificados formalmente, os proprietários de terrenos de marinha terão 60 dias para iniciarem suas intercessões na Justiça. Quem não impugnar a nova demarcação neste prazo estará concordando com ela, que passará a ser considerada definitiva. O advogado Eduardo Bastos alerta para um erro comum nesta fase de defesas, já que muitas pessoas recorrem a profissionais despreparados, que focam na anulação da remarcação. “É fundamental que a nova demarcação seja concluída com seriedade e exatidão. Precisamos requerer umadecisão final e confiável, com métrica verossímil. Procrastinar o parecer da SPU apenas vai apenas criar problemas futuros e gerar novos gastos”, explica.
Uma questão importante a ser ponderada nesta circunstância é a intervenção do Ministério Público Federal (MPF) no processo administrativo de remarcação dos terrenos de marinha, coordenado pela SPU, por meio de ações civis públicas com viés ambiental. O MPF requer indiretamente a remarcação da Linha do Preamar e, assim, pula etapas do procedimento oficial. O equívoco partiu de uma avaliação desacertada da administração pública municipal, que concedeu aos terrenos de marinha o título de Áreas Non Aedificandi,limitando seu potencial construtivo com o Plano Diretor Municipal, por meio da Lei Complementar n.º 482/2014, que discorre sobre o novo zoneamento urbano.
O Plano Diretor deixa margem para interpretações dúbias ao assimilar erroneamente as Áreas de Preservação Permanente às Áreas Non Aedificandi, ambas com utilização restringida administrativamente. Enquanto as APP são limitadas por sua importância na preservação de margens de rios, nascentes e solos, tendo assento especial no Código Florestal, as Non Aedificandi têm por finalidade ordenar o espaço urbano destinado à habitação, não tendo como objetivo proteger a biodiversidade, e sim a segurança da população.
Este lapso permite que diversas ações ambientais sejam propostas pelo Ministério Público Federal, cujos pedidos principais referem-se à adequação do uso destes espaços – em geral, sobre a demolição das construções existentes para posterior recuperação ambiental. A implicação destas ações se encontra em fase de discussão, o que poderá resultar na homologação do processo demarcatório nas propriedades envolvidas. “Neste estágio, é necessário rever o processo demarcatório. Apenas em última instância é plausível permitir que o MPF lide com a questão para evitar a individualização de decisões de remarcação em trechos do litoral. Isto acarretaria na lamentável perda de direto à defesa na esfera administrativa para os moradores, além de estimular novas ações e recursos pessoais, que poderiam abarrotar o Poder Judiciário e resultar em insegurança jurídica”, enfatiza Bastos.
Fora isto, tramita no domínio ministerial um inquérito no qual se busca apurar eventuais irregularidades da Secretaria do Patrimônio da União na condução do processo demarcatório. Ou seja, ao considerar uma das funções primordiais do Ministério Público – de servir como fiscal e guardião da Lei –, o MP deveria priorizar a apuração destas denúncias, analisando eventuais fragilidades nos estudos, omissões de documentos e falhas na conduta de servidores públicos, ao invés de interferir no procedimento padrão. A justificativa é: implicações ambientais não tem relação com o propósito real dos terrenos de marinha. Ponto!
Enquanto isso, a Prefeitura de Florianópolis está negando os pedidos de consultas de viabilidade, aprovação de projetos, alvarás e Habite-se de imóveis que serão somados a esta remarcação. Os proprietários já deveriam estar sendo notificados para, assim, poderem iniciar suas defesas administrativas. No entanto, a prefeitura descumpriu o prazo de entrega das informações cadastrais destes moradores, o que é uma obrigação definida por lei (13.139/2015). Com o desacato, a SPU entrou com dois recursos na Advocacia-Geral da União(AGU) para cobrar retorno cabível da administração executiva da capital, que se pronunciou apenas extraoficialmente.
RISCO DE PERDER A PROPRIEDADE
Outra polêmica sobre esta nova demarcação diz respeito à Medida Provisória nº 691/2015, que, se admitida no Senado, permite a alienação destes imóveis e abre a possibilidade de negociação dos terrenos de marinha com base no valor de mercado. Ou seja, o morador poderá ter que recomprar da União o domínio pleno sobre a propriedade.
A MP 691 prevê a criação do Programa de Administração Patrimonial Imobiliária da União (PROAP), que, por meio de seus coordenadores, poderá alienar, reformar, edificar, adquirir, alugar ou vender os imóveis da União. A determinação estipula que o ocupante possa adquirir definitivamente o imóvel, caso recompre o mesmo, recebendo um desconto de 25% sobre o valor de mercado, e se livre das taxas anuais de ocupação.
Em dezembro passado, o Senado aprovou a venda de terrenos rurais e urbanos na Amazônia. A MP autoriza a venda de propriedades, inclusive de terrenos de marinha, localizadas em municípios com plano diretor e urbanístico aprovados e com mais de 100 mil habitantes. O governo acredita que a venda dos terrenos possa angariar R$10 bilhões para os cofres públicos. A decisão deixa em alerta os donos de propriedades em igual situação pelo país.
TERRENOS DE MARINHA
Os terrenos de marinha e seus acrescidos são bens da União, tal como dispõe o inciso VII do artigo 20 da Constituição Federal. Conforme preceitua a legislação, são terrenos de marinha locais em profundidade de 33 metros, medidos horizontalmente para a parte da terra, da posição da Linha do Preamar Médio do ano de 1831, marco referencial.
Originalmente, sua existência servia como estratégia de proteção territorial. Na teoria, estas áreas serviam para a segurança nacional, numa possível invasão ao nosso litoral. Contudo, atualmente a existência dos terrenos de marinha possui apenas finalidade arrecadatória. No Brasil, estima-se que pelo menos 15 milhões de pessoas residam em áreas de marinha e em seus acrescidos.
A permanência nessas regiões é possível por meio do pagamento de taxas anuais de ocupação, de 2% a 5% (concomitante ao IPTU), e laudêmio de 5% do valor total do imóvel nas transições de compra e venda. Os únicos isentos da cobrança são os moradores com ‘renda familiar’ de até cinco salários mínimos. Apenas cerca de 40% do litoral brasileiro está demarcado de maneira definitiva. O governo federal pretende concluir as demarcações até o ano de 2020.
(Batata Comunicação, 31/03/2016)
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