Prestes a tombar

Prestes a tombar

Janelas originais quase não existem mais. Muitas das portas estão lacradas. Restam apenas fachadas e coberturas mal conservadas, lembranças de uma época em que Santa Catarina foi construída pelos imigrantes europeus. A situação precária de grande parte dos casarões tombados no Estado pode ser verificada no Centro de Florianópolis, que abriga nada menos do que 400 dos 600 imóveis preservados na Capital.

O Serviço de Patrimônio Histórico, Artístico e Natural (Sephan) não tem catalogado o número total de imóveis tombados que seguem abandonados. Sabe-se que as igrejas são preservadas como bens históricos desde 1975. Os tombamentos de casarões antigos começaram em 1986, e, desde então, enfrenta-se um problema conceitual, como define o professor do curso de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Valmir Muraro.

Segundo ele, mais da metade dos bens preservados no Brasil está abandonada, e a Capital não foge à regra. Um dos culpados por este cenário desalentador é a burocracia.

– Hoje, não há força de lei para que um patrimônio seja impedido de ir ao chão. Não existe clareza entre os serviços públicos e ainda enfrentamos um problema sério, que é o alto custo da manutenção – aponta.

Para Muraro, de nada adianta tombar um edifício e obrigar os seus proprietários a assumir todo o custo de preservação. Muitas vezes, eles não conseguem sequer arcar com as grandes despesas envolvidas numa restauração e, além disso, acumulam multas aplicadas pelos municípios.

Num rápido passeio por uma das praças mais movimentadas da Ilha, a Getúlio Vargas, a popular Praça dos Bombeiros, é possível constatar o que assevera o professor. As construções remetem ao estilo arquitetônico luso-brasileiro do período colonial eclético pós-modernista, segundo a técnica do Sephan, Dorotéia Hagemann. Mas estão prestes a virar ruínas. Para os vizinhos, estas edificações viraram moradia de quem não tem mais onde dormir.

Este é o caso de um casarão vizinho ao prédio o Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf), na praça. O proprietário lacrou as portas com concreto para evitar a entrada de vândalos. Os sinais de abandono são evidentes, com árvores crescendo entre as rachaduras. Em frente a este, outro casarão apresenta as mesmas condições. A diferença é que o segundo imóvel estava sendo restaurado pelos proprietários, mas a obra foi embargada e, desde então, o endereço passou a abrigar mendigos.

De acordo com o Ipuf, o imóvel será locado e apenas divisórias internas estão permitidas ali.

O mesmo ocorre com um imóvel da Rua Anita Garibaldi, no Centro, de 1905, em que não há mais portas nem janelas inteiras. O entorno da residência foi lacrado pelo dono, que acumula dívidas com a prefeitura.

O professor da UFSC explica que a realidade brasileira, a começar pelas questões econômicas, é muito distante daquela de países europeus. Em Portugal, por exemplo, as pessoas habitam construções datadas do século 14. Lá, existe uma legislação que garante isenção de tributos e auxílio público nas restaurações, incluindo a compra dos materiais.

– Os europeus têm em mente que um bem antigo utilizado tem até 80% mais chance de ser preservado. Não adianta restaurar e deixar fechado – diz Muraro.

Hagemann, por sua vez, afirma que as casas tombadas na Capital contam com o benefício da redução do IPTU, que pode chegar à isenção, dependendo do imóvel. Para o subprocurador de Urbanismo, Patrimônio e Meio Ambiente da Capital, Nórton Makowiecky, a fiscalização é insuficiente para fazer valer a legislação.

Multas calculadas em R$ 250 por metro quadrado do imóvel

Além da hipervalorização imobiliária, o professor Muraro aponta uma interferência assustadora nas características originais dos imóveis preservados e a falta de consciência da população como os principais problemas enfrentados em Florianópolis.

Segundo ele, não são antigas apenas as edificações construídas nos séculos 18 e 19.

– No Estado, contamos com construções do século passado que precisam ser preservadas – afirma.

O Subprocurador Makowiecky, discorda. Numa avaliação geral, afirma ele, grande parte das construções na Capital está preservada.

Para o Coordenador de Fiscalização de Obras da Secretaria de Urbanismo e Serviços Públicos (Susp), Edevaldo Silva, o grande problema para se cobrar a conservação de um bem histórico reside na identificação do proprietário. Segundo ele, a maioria morreu e os familiares não querem assumir as despesas. A multa, conforme o plano diretor, é de R$ 250 por metro quadrado do imóvel tombado. A Susp não tem o controle de quantas casas receberam notificação.

Casarão da Rui Barbosa

O presidente do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf), Ildo Rosa, adianta que não são só bens tombados os fiscalizados na Capital. De acordo com o plano diretor, qualquer casa no município com mais de 30 anos precisa da aprovação prévia do Ipuf antes de ser demolida. Um exemplo disso é a antiga Escola de Autonomia, na Rua Rui Barbosa, Centro.
O prédio não passou por uma avaliação do Ipuf, mas tem valor histórico e se encontra preservado pela Lei dos 30 anos. Para evitar o cenário de abandono, Nelci Medeiros, 38 anos, mora com a família no casarão antigo há um ano. O marido dela é o caseiro do local e a família foi trazida pelos proprietários de São Miguel do Oeste.

Casarão da Conselheiro Mafra

Próximo ao Mercado Público da Capital, apresenta um dos piores estados de conservação. A casa, de 1830, sediou a primeira venda de secos e molhados da Ilha.
Pedro Medeiros, 57 anos, lembra que, quando criança, costumava trocar peixe por lenha ali.
– Era a venda do troca-troca. Trocava até farinha por querosene – diz ele.
Depois de ter sido alugado a um comerciante, o local está abandonado há mais de cinco anos. Segundo os vizinhos, a edificação virou até ponto de prostituição. Para não cair, ela está rodeada de tapumes, colocados pela prefeitura.
Segundo os relatórios do Ipuf, o imóvel ainda mantém o porão original e tem condições de ser recuperado. Na última avaliação imobiliária, a casa estava à venda por R$ 500 mil.
De acordo com a Susp, os proprietários (filhos do dono) têm uma dívida de mais de R$ 80 mil com a prefeitura. Em 2004, o imóvel foi desapropriado e passou ao poder público. Sua venda está sendo intermediada pela procuradoria do município.

Casarão Bruggemann

Localizado na Praça Getúlio Vargas, a popular Praça dos Bombeiros, no Centro de Florianópolis. O seu proprietário faleceu. Tramita na prefeitura um projeto para viabilizar a reforma da casa.
Os herdeiros lacraram as portas como uma medida paliativa. De acordo com Jorge Francisco Bruggemann, a casa, construída em 1950, vai virar um centro comercial depois que for recuperada. As negociações, segundo ele, estão adiantadas.

Casarão da Anita Garibaldi

O Ipuf afirma que o morador do local recebeu inúmeras notificações, e a situação foi parar na procuradoria de Florianópolis.
A casa foi tombada em 1986, em boas condições, segundo técnicos do Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Hoje, seu estado é lastimável.
O proprietário não foi encontrado para comentar a situação.

Casa do ex-governador Hercílio Luz

Tombada em 2002 pelo Estado, a casa chama a atenção de quem passa pela Avenida Mauro Ramos, no Centro da Capital. De acordo com o atual proprietário, Laudares Polli, poucos sabem que ali morou Hercílio Luz. A família Polli adquiriu o casarão na década de 1950.
Laudares explica que a burocracia é o grande entrave para restaurar o imóvel.
– Para chegar a resultados práticos, perdemos anos de negociação, sem contar os altos custos de manutenção – diz.
O local já foi repartição do governo federal e, hoje, está com portas e janelas lacradas para evitar a entrada de vândalos. Pode virar museu ou centro comercial.

O que diz a Lei na Capital

O artigo 19 da lei municipal nº 1.202 de 06/05/74, alterado pela lei nº 6.486 de 27/05/04 estatui:
“Art. 19 Sem prévia autorização do Sephan, não será permitido, nas vizinhanças de bem imóvel tombado, ou enquadrado nas categorias de preservação P1 ou P2, fazer obra, de qualquer espécie, que impeça ou reduza a visibilidade, sob pena de ser determinada a demolição da obra às expensas do proprietário e de lhe ser imposta multa de até R$ 2.000,00 (dois mil reais)”.
Posteriormente, no ano de 2005, a Lei Complementar nº 154/2005 “proíbe construções que possam interferir na visualização de edificações integrantes do patrimônio histórico, cultural e religioso do Município de Florianópolis”.

Como funciona

Os imóveis tombados na Capital são classificados em três categorias:
P1 – Tombamento total (externo e interno): igrejas e museus, por exemplo.
P2 – Tombamento externo: fachadas e coberturas
P3 – Unidade de acompanhamento: a casa pode ser demolida, mas com restrições. Não apresenta valor histórico, mas está ao lado de patrimônios. Geralmente, conta com restrições quanto à sua altura.

O que diz a Lei na Capital

O artigo 19 da lei municipal nº 1.202 de 06/05/74, alterado pela lei nº 6.486 de 27/05/04 estatui:
“Art. 19 Sem prévia autorização do Sephan, não será permitido, nas vizinhanças de bem imóvel tombado, ou enquadrado nas categorias de preservação P1 ou P2, fazer obra, de qualquer espécie, que impeça ou reduza a visibilidade, sob pena de ser determinada a demolição da obra às expensas do proprietário e de lhe ser imposta multa de até R$ 2.000,00 (dois mil reais)”.
Posteriormente, no ano de 2005, a Lei Complementar nº 154/2005 “proíbe construções que possam interferir na visualização de edificações integrantes do patrimônio histórico, cultural e religioso do Município de Florianópolis”.

(Ariadne Niero, DC, 04/03/2007)