02 abr O trágico código ambiental catarinense
Em novembro do ano passado, Santa Catarina sofreu na pele conseqüências provocadas em boa parte por décadas de devastação ecológica. Na ocasião, chuvas ininterruptas causaram enchentes e o desabamento de encostas, deixando 80 mil desabrigados. Pelo visto, a tragédia não foi suficiente para abrir os olhos do governador Luiz Henrique da Silveira e de deputados estaduais. Ontem à noite, com trinta e um votos a favor e sete abstenções, a Assembléia Legislativa aprovou projeto de lei que instaura o Código Ambiental do Estado. Entre outros absurdos, o texto reduz de 30 para cinco metros a faixa mínima de mata ciliar a ser preservada nas margens dos rios.
A votação ocorreu menos de uma semana após a sanção da lei que transforma quase 10% do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, no município de Palhoça, em Áreas de Proteção Ambiental, o mais permissivo entre os doze tipos de unidades de conservação definidos pela legislação federal.
Durante todo o dia de ontem, parlamentares estiveram reunidos para tratar da votação, que só teve resultado conhecido no início da noite. Agora, o governo de Santa Catarina tem seis meses dias para regulamentar sua nova e polêmica legislação.
De acordo com informações da Polícia Militar local, cerca de dez mil pessoas ficaram de pé no entorno da Assembléia para acompanhar a votação. A maioria absoluta era de manifestantes favoráveis ao código e oriundos de diferentes partes do estado. A procuradora da República Analúcia Hartmann, por exemplo, precisou desviar de seu caminho para chegar ao escritório, já que algumas ruas foram interditadas por dezenas de ônibus estacionados. “O projeto, como foi aprovado, é muito grave. Não é culpa do governo se chove muito em Santa Catarina. Mas se os locais de risco não estivessem ocupados o prejuízo seria muito menor”, disse a O Eco.
Em uma última tentativa de sensibilizar os parlamentares, Hartmann enviou uma carta aberta aos chefes das comissões na manhã de ontem. Nela, a procuradora explica que não é legítimo reduzir o tamanho mínimo das matas ciliares de 30 para dez metros, em propriedades acima de 50 hectares, ou para cinco metros, em terrenos com menos de 50 hectares. “A legislação estadual pode apenas complementar a federal, sempre de forma mais protetora. Em resumo: regras estaduais menos protetoras do meio ambiente do que regras federais não têm validade, não podendo gerar efeitos. Assim, dizer que o futuro Código Ambiental de Santa Catarina vai legalizar o desmatamento de áreas de preservação, é induzir em erro a população”, afirma.
Mas foi isso o que fizeram os deputados ao aprovar o projeto de lei. Ele, por sua vez, é diferente do documento enviado pela Fundação Estadual de Meio Ambiente (Fatma), que propôs a criação do Código e recebeu recursos do banco alemão KFW para executá-lo. Até agora, ninguém sabe de quem é o texto final.
Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da Fatma explicou que o presidente deve se reunir com as secretarias de Agricultura e de Meio Ambiente nos próximos dias para analisar as mudanças e “estudar a estrutura do órgão à luz dessa nova legislação”.
Entre os 40 deputados do quadro estadual, dois não compareceram à Assembléia e nenhum votou contra a nova determinação. Dos sete que preferiram a abstenção, seis são membros do Partido dos Trabalhadores (PT) e outro é do PDT: o Sargento Amauri Soares.
Presidente da Comissão do Meio Ambiente da Câmara, Décio Góes (PT) explicou os motivos da escolha. “Queremos que haja um Código, mas não da forma que este adquiriu. Ainda há problemas estruturais. Mas todos sabem que valeu como voto contrário”.
Segundo ele, o texto explica que os proprietários com matas ciliares de até cinco metros nas margens de rios serão anistiados e não precisarão recuperar essas matas até o índice de 30 metros. Todavia, os que seguiram a lei federal e não desmataram nada, deverão manter do jeito que está. “Você acha que isso vai dar certo? Como vão provar se o desflorestamento aconteceu antes ou depois da sanção do Código? Virou uma lei da agricultura, e não da ecologia”, reclama.
Problemas graves
Os ambientalistas não estão nada satisfeitos com as futuras regras. Para André Ferreti, da Fundação O Boticário, muitos trechos do Código são inconstitucionais. Além disso, afirma que o relatório tem principalmente um viés econômico e não ambiental, como deveria ser. “A preocupação é com a produção agrícola. Então, o nome da proposta está errado”, diz.
Para completar, Ferreti acredita que reduzir as matas ciliares significa extinguir determinadas espécies da fauna e da flora dependentes de corredores para circulação e da umidade característica de vegetações extensas. “Além disso, as águas dos rios ficarão mais turvas, já que as chuvas tendem a cair com maior freqüência em virtude das mudanças climáticas e vão levar mais resíduos da agricultura, como folhas, palhas e agrotóxicos. Tudo porque as produções ficarão mais próximas dos leitos e nascentes”, emenda.
A preocupação de André ganha eco nas palavras de Germano Woehl, presidente da não-governamental Rã-Bugio e colunista d’O Eco. A falta de proteção das árvores das matas ciliares, afirma, vai auxiliar no assoreamento dos rios e rebaixamento dos lençóis freáticos. Em outras palavras, faltará ainda mais água em um estado que sofre todo verão com a escassez. “Por isso precisamos optar pela educação ambiental. Se o povo soubesse os prejuízos, não seria a favor deste Código. Mas soube que nas audiências públicas os ambientalistas sequer podiam falar, eram vaiados”, diz.
A procuradora Analucia Hartmann é outra que dá um exemplo do que já acontece com Santa Catarina. “O governo e a Companhia de Águas, por exemplo, precisaram cavar poços de 500 metros no oeste do estado para distribuir água. O que tentei mostrar com a minha carta é que os deputados serão chamados à responsabilidade no futuro”, explicou.
Justiça será acionada
Atualmente, Santa Catarina é o terceiro estado com o maior número de remanescentes de Mata Atlântica no país. Mesmo assim, restam apenas 1,66 milhão de hectares, dos quais apenas 280 mil podem ser considerados florestas primárias. E no que depender do histórico do governador Luiz Henrique da Silveira, no entanto, este número tende a diminuir em progressão geométrica.
Além do estado que comanda ser o tricampeão no desmatamento do bioma, o político do PMDB tem a ficha suja com a justiça. Reportagem publicada em 2002 pelo portal do Tribunal de Justiça Federal da 4ª Região conta que o então prefeito de Joinville (SC) teria de responder pelas acusações de cometer crime ambiental ao aterrar área de mangue para construir uma avenida. Reeleito governador de Santa Catarina em 2006, Luiz Henrique da Silveira ainda respondia ao processo.
A partir de agora, o Ministério Público vai analisar o texto do Código Ambiental e pensará em quais medidas legais deve tomar para anulá-lo. Mas não estará sozinho. O líder do Partido Verde, deputado José Sarney Filho (PV/MA), afirmou que pretende entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) caso o governo sancione a lei.
“Acho uma tremenda contradição que um estado que há menos de seis meses sofreu uma tragédia ambiental por má ocupação do solo, com casas em encostas de morros e topos desmatados, queira acentuar as práticas que a causaram, e não revê-las. Além disso, a Assembléia aprovou uma lei inconstitucional, porque vai contra a determinação federal e pretende diminuir área da Mata Atlântica, uma das florestas mais ameaçadas do mundo. Vamos esperar a sanção, mas já estamos redigindo a Adin”, afirmou.
Procurado durante todo o dia pela reportagem, o deputado Rogério Mendonça, presidente da Comissão de Agricultura de Santa Catarina e um dos maiores defensores do Código, não retornou as ligações.
(Felipe Lobo, ECO, 01/04/2009)