03 dez Chuvas, irresponsabilidade e tragédias
Artigo escrito por João Guilherme Wegner da Cunha, Geólogo – Conselheiro CREA/SC (03/12/2008)
“A formulação de um problema é, muitas vezes, mais importante que uma resolução, a qual depende simplesmente de uma habilidade matemática ou experimental. Fazer novas perguntas e considerar novas possibilidades para enfocar velhos problemas através de um novo ângulo exige imaginação criadora e indica o verdadeiro progresso da ciência”. Einstein
“A situação em SC é preocupante”.
O número de desabrigados e desalojados aumenta e beira, hoje, os 35.000, 1.500.000 pessoas foram atingidas, direta e indiretamente.
Desde ontem a solidária, porém precária, Defesa Civil, batia cabeça e já admitia não poder dar conta da situação. 31 pessoas já morreram.
As pontes sobre os Rios Itajaí-Açú e Tijucas estão interditadas, o que significa que quase 50 km de litoral, de Navegantes a Tijucas estão isolados. Não se pode usar a BR-1001 para chegar ao RS, cidades encontram-se isoladas.
Parou de chover nesse momento, mas a previsão é de que as chuvas continuem até terça.
Foi bom ver que, no meio do caos, ainda contamos com a solidariedade humana entregando roupas e alimentos nas escolas e postos de coleta.
A idéia dos “refugiados ambientais” como resultado das “mudanças climáticas” ao que parece já é uma realidade, e nós humanos vamos ter que aprender a conviver com ela.
Quem puder ajudar faça contato com a defesa civil de seu estado e cidade.
“Paz e Bem”
O texto acima, modificado de Guerra, companheiro da REASUL, demonstra uma visão dos problemas ambientais e suas vítimas, que gostaria de abordar por outro ângulo.
Passam os vendavais, chuvas e enchentes, renasce a solidariedade marcante do povo Catarinense. Porém, fica no ar uma pergunta – quem são os responsáveis pela quase totalidade destas desgraças anunciadas?
Ocupações irregulares de encostas e APP’s de margem de rios, remoção de vegetação em áreas críticas, de risco anunciado. Fiscalização? Onde? Quando?
Hoje uma família de baixa renda (até 3 ou 4 salários mínimos) somente consegue constituir moradia, própria ou alugada, que caiba em seu parco orçamento com alguma combinação entre as seis seguintes variáveis: distância, periculosidade, insalubridade, desconforto ambiental, precariedade construtiva e irregularidade fundiária.(Santos, 2007)
Essa condição orçamentária leva inexoravelmente a população pobre a três alternativas: favelas, zonas periféricas de expansão urbana e APP’s.
Especialmente nessa última condição a população de baixa renda tem sido protagonista ativa e passiva da grave tragédia geotécnica que incide generalizadamente em áreas de relevo mais acidentado e margens de córregos, tragédia que põe a perder por erosão, escorregamentos, assoreamento e enchentes a já precária infra-estrutura urbana, as próprias habitações, patrimônios públicos e privados e, não raramente, vidas humanas.
Assim, a expansão urbana periférica vem se processando, via de regra, através de intensas e extensas terraplenagens implicando em exposições cada vez maiores e mais prolongadas dos solos de alteração (mais profundos, menos argilosos, mais erodíveis) aos processos erosivos.
Uma prática nociva e nada criativa do ponto de vista técnico, pela qual persistentemente se privilegia a adaptação dos terrenos aos projetos ao invés de adequar os projetos às características naturais dos terrenos.
Essa expansão urbana, principalmente de populações de baixa renda, baseia-se em dois tipos principais de ocupação habitacional: os “loteamentos regulares”, com projetos aprovados pelas administrações municipais, e as ocupações irregulares (invasões) de terrenos privados e públicos.
Via de regra os “loteamentos regulares” são implantados através de extensas terraplenagens, arrasando morros e encostas e aterrando vales, com a venda e início de ocupação dos lotes normalmente antecedendo a instalação completa da infra-estrutura urbana básica (ruas pavimentadas, sistemas de drenagem de águas pluviais, saneamento básico, proteção de taludes contra a erosão).
As invasões, por seu lado, têm ocupado especialmente encostas de grande declividade, com a implantação de arruamento precário, sem proteção alguma, e ocupação lote a lote, cada qual encaixado por escavação na encosta, lançando-se o material resultante da escavação morro abaixo.
Na mesma ordem de total anarquia técnica, as invasões acontecem também em fundos de vale e margens de córregos.
Ambas as formas de ocupação, “loteamentos regulares” e invasões em terrenos de alta declividade e margens de córregos, são catastróficas do ponto de vista geotécnico, expondo enormes superfícies de solo aos processos erosivos e colaborando para o assoreamento das drenagens.
Nos terrenos ocupados por invasão há a agravante da produção sistemática de áreas de riscos; nas encostas de alta declividade, por escorregamentos, nos fundos de vale e margens de córregos, por solapamento e enchentes.
Os processos erosivos em terrenos de alta declividade têm assim uma dupla perversidade geotécnica: degradam a infra-estrutura urbana nas áreas onde ocorre a erosão – área fonte dos sedimentos, com destruição de ruas, edificações, sistemas de drenagem e produção de áreas de risco, e provocam o intenso assoreamento das drenagens naturais (córregos e rios) e construídas (bueiros, galerias, canais) – áreas de destino dos sedimentos, constituindo hoje uma das principais causas das enchentes que assolam as cidades.
Centenas de milhões de reais são anualmente consumidos na perda total e em custos de reconstrução de patrimônios públicos e privados nas áreas submetidas à erosão, nas despesas com os faraônicos e intermináveis serviços de desassoreamento das drenagens e nas graves conseqüências econômicas e sociais das enchentes decorrentes de todo esse terrível processo.
Adicionalmente, nas ocupações irregulares de fundos de vale e margens de córregos, o lixo urbano não recolhido e o entulho de construção civil lançado ou reutilizado irregularmente colaboram para a agravação do fenômeno de assoreamento das drenagens.
De várias ordens são as providências necessárias a reduzir a nível mínimo essa verdadeira catástrofe geotécnica: legal, técnica, educacional, administrativa, política e assistencial.
Porém há uma providência que se não equacionada e resolvida, tornará ineficaz qualquer outro tipo de ação.
Trata-se da necessidade de implementação de uma política habitacional que resulte de fato em uma substancial redução da pressão de ocupação sobre a zona periférica das cidades, considerados aí, especialmente, os fundos de vale e as encostas com alta declividade (Santos, 2008).
Existem, na maioria das cidades onde assistimos as tragédias, a faixa compreendida entre o início da zona de expansão urbana e o limite dos bairros periféricos já consolidados um grande número de “vazios urbanos”, pequenos, médios ou grandes terrenos apropriados fisicamente para a ocupação habitacional.
Nestes terrenos que, por motivos diversos, especialmente a especulação imobiliária, ainda não foram ocupados, caberia repensar-se a instalação desta política habitacional.
Um programa de compra ou desapropriação desses terrenos, por interesse social, geraria em somatória área suficiente a abrigar grandes contingentes humanos que hoje estão instalados em áreas degradadas da zona periférica, muitas vezes sob a anuência da Resolução 369/06 do próprio CONAMA.
Porem, a meu ver existe o mais nefasto dos crimes que afloram nestas situações de crise, obras públicas de papel, mal feitas, não fiscalizadas, ou quando muito, fiscalizadas de forma burocrática, longe da necessária fiscalização técnica. Tem Licença, ART e “projeto”? Tudo bem, então!!!
Os vários acidentes que infelizmente vêm ocorrendo em obras públicas em todo o país, alguns poucos chegando ao noticiário de mídia, têm trazido à baila a íntima relação dessas obras com os terrenos geológicos em que são construídas e a ineficaz fiscalização destas “obras”.
E, por conseguinte, a enorme importância que as investigações geológicas e sua fiscalização técnica contínua têm para o êxito técnico desses empreendimentos.
Necessário, nesse contexto, que todos os profissionais de Engenharia tenham um exato e uniforme entendimento sobre o significado e as características conceituais e metodológicas dessas investigações.
Nas investigações geológico-geotécnicas que necessariamente antecedem o Projeto, o Plano de Obra e a Licença e se prolongam no período de obra e na própria operação do empreendimento, essa responsabilidade maior do corpo fiscalizatório deve ser voltado a Geologia de Engenharia, entendida essa geociência aplicada como a responsável pela interface tecnológica do Homem com o meio físico geológico.
Para tanto é preciso que fique muito claro a todos que a missão da Geologia de Engenharia não se reduz a entregar ao projetista um arrazoado sobre a geologia local, um punhado de perfis e seções geológicas e resultados de ensaios com os índices de comportamento geotécnico dos diversos materiais presentes.
O trabalho da Geologia de Engenharia transcende essa limitada visão meramente descritiva e parametrizadora, ainda infelizmente bastante comum entre profissionais e empresas executantes, órgãos públicos demandantes e na fiscalização técnica de órgãos competentes, inexistente.
No meu retorno de Lages, ontem 23/11, deparei-me com uma destas “obras públicas”, BR-282, “reformada”, recém entregue a população e que já apresentava, ao longo de quase todo o seu percurso, buracos em remendos recém feitos. Pavimento sério este!!!
“Serviços” de drenagens mal, ou subdimensionadas lançavam água sobre a pista, remetendo a possibilidade de aquaplanagem dos veículos, cortes de taludes mal feitos ou de declividade acentuada, com solos fixados por hidrossemeaduras ineficazes, transformavam-se em quedas de barreiras de todas as dimensões e colocavam em risco a vida de quem, por ironia, com impostos, pagou a obra mal feita !!!
Para completar, fundamentalmente no trecho Águas Mornas – Rancho Queimado, o plantio de exóticas (pinus eliotis) em encostas e taludes angulosos, mal dimensionados, localizados nas faixas de domínio da estrada, se desmanchavam e recobriam a já precária rodovia.
Nos próximos dias, restará a falta de água, por rompimento de tubulações e economia de polissulfato necessária para flocular o sedimento em suspensão que escorreu para nossas drenagens, das encostas erodidas pela falta de vegetação que a sustente.
Precisamos, de forma séria, técnica e contundente repensar mais esta tragédia e agregar, com responsabilidade e projetos sustentáveis, mais segurança a vida das populações atuais e futuras deste Estado.