27 jan Cachoeira do Sertão, uma das fontes do Peri, já não tem mesma vazão de antes, alertam moradores
Em meados de 1900, os avós dele atravessaram a baía em pequena canoa a vela e trocaram Paulo Lopes, no Continente, pelas encostas inóspitas do Sul da Ilha. Logo aprenderam a seguir os cursos d’água para escolher as fontes de beber, os remansos das lavadeiras e os locais para casas, engenhos e plantações.
Hoje, Romário Darci Barcelos, 31, não consegue mais manter a família apenas com as lides na roça, já se adaptou à rotina do cargo de supervisor de segurança privada, mas gosta mesmo é de viver do jeito que aprendeu com os pais.
Legado que inclui, também, a boa voz na cantoria do Terno de Reis e o desejo de desbravar os caminhos de pedras abertos pela água, das nascentes à jusante. E mergulhar em cada uma das cachoeiras do Sertão do Peri, vilarejo entre a Costa de Dentro e a Costeira do Ribeirão, onde o tempo parece ter parado depois da chegada dos avós de Romário.
Sempre que sobra tempo, o rapaz se diverte como menino na cachoeira da Carabina, queda d’água do Ribeirão Grande, uma das fontes de reposição da Lagoa do Peri. No caminho, descansa à sombra, mata a sede em bicas que escorrem límpidas pelas fendas das pedras e ensina como fazer sessões gratuitas de hidromassagem em cascatas de tirar o fôlego.
A fisionomia dele se transforma diante da piscina rústica de aproximadamente 60 metros quadrados de espelho d’água, com trampolins naturais formados nas próprias pedras ou troncos de árvores que crescem frondosas ao redor. “
É a nossa praia”, convida sorridente. Com habilidade, Romário sobe na rocha mais alta da beirada e, com a técnica da repetição, ergue os braços, faz o impulso e mergulha de cabeça no ponto mais profundo do poção. “Tem mais de dois metros, já foi maior”, diz, ao voltar à tona as mãos cheias de areia do fundo.
Quem conhece ajuda a preservar
Constatada apenas por quem passa por elas todos os dias, a redução do Ribeirão Grande preocupa a vizinhança do Sertão do Meio e da estrada Francisco Thomaz dos Santos, no miolo mais preservado do Parque Municipal da Lagoa do Peri. Mesmo em períodos de chuva, hoje a queda d’água tem pouco mais de um metro de largura.
“Há uns cinco anos, o véu tinha mais de quatro metros, mas vem secando. Mesmo com o fim das roças e pastagens. Temo pelo futuro dessa água”, aponta Romário, que tem motivos de sobra para reverenciar as cachoeiras do Sertão. O menino tinha 10 anos quando desceu para pescar robalos com o pai, Darci Barcelos, conhecido cantador de Terno de Reis da região. O homem escorregou na pedra molhada, bateu com a cabeça e morreu afogado.
Romário cresceu, aprendeu a nadar e ainda costuma voltar sozinho ao local do acidente. “Onde o pai caiu, a água agora bate na minha canela”, diz. Outro passeio predileto dele é cruzar a vertente sul do maciço a cavalo para rever os amigos da praia de Naufragados. Lá, as duas cachoeiras que atravessam a trilha também já estão secas.
Solidão sem pacas, rio e cachoeiras
Abundantes até o fim da década de 1970, as pacas desapareceram faz tempo da Costa de Dentro. Na foz, o rio com o nome delas, referência histórica da prainha que virou Solidão, segue o mesmo destino – assoreado, coberto de vegetação, poluído, acossado pela presença humana. A caminho do Saquinho, placas e inscrições improvisadas na pontezinha da rua Lauro Mendes, em postes, muros, árvores e pedras indicam o rumo da cachoeira. Mas não se ouve mais o barulhinho da água escorrendo morro abaixo.
A trilha leva a um paredão escuro, revestido pelo limo. Da queda d’água com seis metros de altura, restaram marcas nas pedras e o fiozinho, ora aparente, ora subterrâneo, que abastece o poção, a piscininha natural onde moradores e veranistas se misturavam para se refugiar do calor escaldante mesmo à beira-mar.
A cachoeira só se reaproxima do volume histórico após as trovoadas de verão ou períodos intensos de chuva, e sem banhistas, os remansos acumulam grande quantidade de folhas das árvores em volta. Matéria orgânica que acentua o assoreamento morro abaixo.
Na Solidão, casas foram construídas sobre cursos d’água que abasteciam o rio das Pacas
Sem água, proprietários abandonaram casas às margens da trilha, algumas literalmente sobre o curso da cachoeira e antes abastecidas por precários sistemas individuais de captação. Emendadas e remendadas, mangueiras formam emaranhado conectado a pequenas fontes acima das áreas de banho, solução comum em comunidades não servidas ou abastecidas precariamente pela Casan (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento).
Construídas na encosta, às margens do curso d’água, na maioria delas já foram retiradas as placas de “Aluga-se”, e outras estão à venda. Dono de quiosque no canto da praia, Levi José Amorim, 49, foi à Solidão pela primeira vez em 1978, e testemunha a morte lenta do riozinho das Pacas.
Naquela época, ele e os amigos mergulhavam do parapeito da ponte antes de subirem à cachoeira. “É comum diminuir a água no verão, mas agora secou de vez.” A seca, diz o morador Eduardo Quirino, chegou ao Saquinho, na outra vertente dos morros Pelado e da Boa Vista, no maciço do Ribeirão.
Reposição não depende só da chuva
Às vezes, chove forte em Santo Antônio de Lisboa, na passagem pelo morro de Cacupé, onde um trecho da floresta atlântica resiste à urbanização crescente. No mesmo instante, lá adiante, na reta de Ratones, o asfalto parece ferver, enquanto no Monte Verde a chuva não passa de garoa. A variação reflete diretamente no reabastecimento dos cursos naturais de água da Ilha, tanto os perenes [definitivos] quanto os efêmeros [temporários].
Mesmo irregular, o nível de chuva na região insular de Florianópolis se mantém estável. A média anual fica entre 1500 e 1800 milímetros, como define o hidrólogo Guilherme Miranda, 45, do Ciram/Epagri (Centro de Informações de Recursos Ambientais e de Hidrometeorologia/Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina).
Assoreamento e poluição atingem rio das Pacas também perto da foz
Miranda também aponta o excesso de consumo como um dos motivos do esvaziamento dos mananciais nas matas que cercam a cidade, principalmente com métodos clandestinos de captação. Ele explica que o Código Florestal de 2012 classifica os cursos d’água de Florianópolis em duas categorias: perenes, aqueles que nascem nas encostas, formam cachoeiras e se transformam em rios ou riachos; e efêmeros, como são chamados aqueles que resistem poucos dias depois do estio.
Nos dois casos, a reposição depende de chuva, das condições ambientais da mata ciliar e seu entorno e do nível de retirada. “É importante a população saber que desmatamentos, erosão, esgoto e captação excessiva aceleram o desaparecimento dos mananciais”, diz. Para ilustrar, Miranda usa dados disponibilizados pela própria Casan: históricamente, o consumo médio em Florianópolis é de 100 a 150 litros/dia por habitante; em Jurerê, neste verão saltou para 250 a 300 litros diários por pessoa.
Casan desativa pequenas represas
Novata no governo, engenheira ambiental Patrice Juliana Barzan, 39, gerente de meio ambiente e recursos hídricos da Casan confirma a redução de vazão e desativação gradativa dos pequenos mananciais da Ilha. Apenas quatro ainda integram o sistema de abastecimento da cidade, mas estão secando – Monte Verde, Quilombo/Itacorubi, Rio Tavares e Morro da Lagoa.
Vários motivos apressam o desaparecimento das cachoeiras tradicionalmente utilizadas pelos moradores dos arredores para captação independente. Entre eles, Patrice aponta o aumento imensurável das ligações clandestinas e desvios não só para abastecimento e consumo doméstico, mas também manutenção de piscinas, açudes e lagos particulares.
A ocupação irregular, reforça a engenheira ambiental da Casan, acentua os desmatamentos e aterros de nascentes e cursos d’água, onde nem sempre o poder público tem controle do volume de água coletado. Aliado a isso, períodos de estiagem agravam os impactos da intervenção humana acima e abaixo dos pontos de captação.
Na maioria dos casos, é o homem quem interrompe o processo natural de reposição das nascentes. No Monte Verde, por exemplo, as marcas escuras nas pedras revelam que o volume de água está muito abaixo de quando os irmãos Fabiano, 38, e Maiko Rosa, 36, nadavam e mergulhavam entre as grutas alagadas, no trecho final da servidão Almeida.
“Hoje, não dá coragem nem de molhar os pés nesta água suja”, diz Fabiano. Em volta, sobram latinhas de cervejas e refrigerantes, sacolas de plástico e garrafas de vidro, lixo que se mistura aos restos de rituais de umbanda e das manchas escuras de esgoto.
(ND, 27/01/2015)