21 jul Moradores tradicionais da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, não entendem “lei dos 30 metros”
Desconfiado, Vilmar Egídio Góes, o Ziquinho, 67, não saiu para pescar na tarde de ontem. O bote “Vô Egídio” permaneceu atracado no cais improvisado, ao lado das redes amontoadas, enquanto ele e a mulher, Graça, 63, juntaram parte dos dez filhos, genros e netos no quintal de casa para tentar entender a “lei dos 30 metros”.
Pouco sabiam da determinação da Justiça Federal à Prefeitura de Florianópolis, para demolição de todos os imóveis localizados a menos de 30 metros da orla da Lagoa da Conceição. “Nunca fomos notificados, apenas ouvimos dizer. Sempre vivemos aqui, desde meu avô. Dependemos da lagoa para pescar e chegar ao mar”, argumenta o pescador, vizinho da mansão do deputado estadual e ex-prefeito Édison Andrino de Oliveira (PMDB).
Tradicionais na rua Rita Lourenço da Silveira, no centrinho da Lagoa, os Góes são exemplo característico do que acontece com a maioria das famílias de Florianópolis. “Os filhos cresceram, casaram e construíram suas casas em nossa volta”, explica Graça, antes de ser chamada para atender telefonema de advogado, que os orientará na defesa em futura ação contestatória. “Vamos esperar para ver o que vai dar, e se a ordem de demolição atingirá também os ricos e poderosos”, emenda.
Outro que segue o legado familiar e ganha a vida com o que tira do mar, Ilton Manoel Fernandes, o Paletó, mora fora do limite dos 30 metros, mas também duvida que pobres e ricos recebam tratamento igual. “Tem políticos, juízes, empresários, oficiais da polícia, muita gente importante”, desafia Paletó, enquanto reforça as amarras do bote Cigano 3 no trapiche do centrinho.
Antes de ir embora, critica a omissão do poder público, que, segundo ele, nunca ouviu os nativos e deixou invadirem e estragarem a Lagoa a Lagoa. “O Ministério Público deveria punir quem realmente causa danos, como a estação de esgoto da Casan e as pontes estreitas, que só aumentam o assoreamento e dificultam a oxigenação da água”, diz.
Surpreendida pela petição judicial que apressa o cumprimento das demolições pela Prefeitura, a Amola (Associação dos Moradores da Lagoa) convoca a comunidade para reunião extraordinária, na noite de segunda-feira. “Vamos definir estratégia de defesa”, diz. Nativo da região do centrinho, o presidente Alécio Passos, 64, alerta que os danos ambientais da demolição serão mais graves que a atual ocupação, mas defende a abertura de acessos públicos a toda orla.
Mais de 900 propriedades na lista
Pelo menos 923 construções às margens da Lagoa da Conceição estão mira para demolição, de acordo com levantamento da prefeitura de Florianópolis, a partir do processo de execução determinado pela Justiça Federal. A decisão que transitou em julgado, ou seja, não há mais a possibilidade de recurso, determina que construções em terrenos de marinha (que também são Área de Preservação Permanente) em até 30 metros a partir da Lagoa da Conceição sejam demolidas. A determinação se estende a edificações que não tenham a documentação necessária de construção, como alvará e habite-se.
“Apresentamos um plano de levantamento das construções para verificar a regularização destes 923 imóveis. A prefeitura deverá cumprir a determinação da Justiça e, consequentemente, a demolição destas construções”, explica o procurador geral do município, Alessandro Abreu. A decisão afeta prédios comerciais e residenciais e postos de saúde ao longo da avenida das Rendeiras, centrinho, avenida Osni Ortiga e rua Rita Lourenço da Silveira.
O artigo terceiro da resolução nº 303 de 2002 do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) classifica como APP o espaço situado “ao redor de lagos e lagoas naturais, em faixa com metragem mínima de 30 metros, para os que estejam situados em áreas urbanas consolidadas”.
Desta forma, como consta na lei municipal 2.193/85, não pode haver construções irregulares às margens da Lagoa. E devem ser abertos novos acessos à orla, de três metros de largura, a cada trecho de 125 metros, e faixa para a circulação de pedestres de pelo menos 15 metros nos terrenos de marinha.
O processo tramita na Justiça Federal desde 2003, movido pela procuradora do Ministério Público Federal, Analucia de Andrade Hartmann. A primeira decisão teve julgamento em 2009, com decisão do juiz federal Guy Vanderley Marcuzzo, do Tribunal Regional Federal da 4ª região, durante a gestão do prefeito Dário Berger.
Se não cumprir, prefeito pode ser preso
Plano de ações elaborado pela prefeitura de Florianópolis foi apresentado ao Ministério Público Federal, que julgou inadequado o cronograma previsto até janeiro de 2016. No próximo dia 13 de agosto, o município apresentará novamente ao MPF e à Justiça Federal um plano de trabalho em uma audiência de conciliação agendada para as 16h.
Segundo decisão do juiz Marcelo Krás Borges, o município deverá levar cronograma organizado com datas e procedimentos a serem cumpridos. “O Ministério Público entende que deveríamos estar com o processo administrativo mais adiantado. Entendemos que se pratique a Justiça, mas não queremos trazer prejuízo à população, não queremos nos precipitar”, contesta o procurador Alessandro Abreu.
De acordo com o procurador, para executar o plano será necessária a contratação de equipes especial, em plano emergencial envolvendo a Secretaria de Obras, Ipuf (Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis), SMDU (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano) e Floram (Fundação Municipal do Meio Ambiente).
Caso a decisão da Justiça não seja cumprida, o prefeito Cesar Souza Júnior poderá responder por improbidade administrativa. “Estimo que a maioria das edificações não terá legalidade atestada, mas deixo claro que isso não é uma iniciativa da prefeitura. Se não cumprir, o prefeito fica sob pena de improbidade administrativa e ação criminal, com possibilidade, inclusive, de prisão”, comenta o procurador. Apesar de a prefeitura não poder mais recorrer, os proprietários das edificações podem entrar com processos individuais.
Atividades náuticas afetadas
Emerilson Gil Emerim, biólogo e mestre em gestão da qualidade ambiental, classifica como “miope” a visão da Justiça de gerenciamento ambiental neste caso. De acordo com ele, é preciso que o judiciário separe bem o que é impacto de dano ambiental. “Tem que saber o quanto da Lagoa da Conceição está comprometida por estas ocupações. Chamamos de impacto as atividades recorrentes de qualquer ação humana”, diz. E cita como exemplo a produção de gasolina, que é necessária, mas acaba provocando impacto negativo. “O que não pode é um dano que realmente degrade e piore a situação ambiental do lugar”, explica.
Segundo Emerim, o meio ambiente é resultado de questões ecológicas, sociais e econômicas integradas. Ele sugere cautela ao tratar de uma questão como essa. “É preciso avaliar caso a caso, e não generalizar. A própria legislação que estima a distância de 30 metros como APP só vigorou a partir de 2002. Como ficam as ocupações antes desse período?”, questiona.
Para Ernesto São Thiago, consultor em desenvolvimento náutico, a aplicação da legislação sobre Florianópolis, sem levar em conta as particularidades do município, é uma “violência à cidade, um pensamento de gabinete sem atentar para a realidade”.
“Em uma geografia como a nossa, com encostas muito próximas à orla, reservar 30 metros como terreno de marinha inviabiliza ocupações em muitos trechos da cidade. Afeta residências e comércios, e toda a indústria náutica, suas marinas, equipamentos de borda d’água, estaleiros náuticos e uma série de negócios ligados à pesca”, explica.
De acordo com São Thiago, uma solução seria a aprovação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 53, de 2007, que tramita no Senado, e que objetiva passar a gestão da orla marítima para os municípios em todo o país. “Hoje, os terrenos de marinha são objeto de barganha por parte do governo federal, fazendo chantagens políticas antes de liberá-los”, denuncia.
Determinações da Justiça
– Obediência da APP de 30 metros no entorno da Lagoa da Conceição, conforme legislação federal (lei n. 4.771/65 e resolução do Conama nº 303/2002)
– Levantamento das ocupações em faixa de marinha no entorno da Lagoa da Conceição
– Identificação dos responsáveis por essas ocupações, bem como quais obtiveram alvarás e em que data foram expedidos
– Abertura de acessos às margens da Lagoa da Conceição, de acordo com as normas legais, ou seja, caminhos de pelo menos três metros de largura a cada 125 metros, bem como a garantia da faixa de 15 metros na margem para a circulação de pedestres (artigos 91 e 92 da lei municipal 2.193/1985)
(Notícias do dia, 19/07/2014)