AS Vozes de um conflito

AS Vozes de um conflito

Um terreno situado às margens da SC-401, a poucos quilômetros das praias do Norte da Ilha de Santa Catarina, é palco de uma disputa que pode ser vista por milhares de pessoas. Cerca de 60 mil veículos por dia circulam pela rodovia. De um lado, manifestantes reivindicam direito à terra e moradia, alegando que a área invadida não desempenha sua função social. Do outro, os donos do terreno buscam que a garantia da propriedade privada seja preservada.

Uma decisão para o impasse pode ser tomada após audiência de conciliação marcada para o dia 7 de fevereiro. O encontro foi agendado pelo juiz agrário Jefferson Zanini, responsável pelo processo. Embora a ação esteja correndo na Justiça agrária, as terras se encontram oficialmente em área urbana. O proprietário, ex-deputado estadual Artêmio Paludo, efetua o pagamento de IPTU desde 1993 e somente em 2013 depositou valor de R$ 31,1 mil referente ao imposto.

O Ministério Público de Santa Catarina já emitiu parecer favorável à desocupação dos manifestantes.

R$ 9,8 mil

É o preço do metro quadrado mais caro em Jurerê Internacional,

que fica a pouco mais de

cinco quilômetros da invasão.

60 mil

É a quantidade de carros que circula na rodovia SC-401 diariamente

Área invadida

– O terreno localizado em área urbana é de propriedade do empreendimento Florianópolis Golf Clube, cujos sócios são Artêmio Paludo, sua esposa e seus filhos. A medida total da área, segundo apontam os registros de imóveis, é de 205 hectares, onde foram construídas duas residências.

– A aquisição das terras ocorreu no decorrer dos anos 1980 e elas foram usadas para três investimentos. O primeiro foi para criação de camarão em cativeiro, empreendimento nomeado como Paludo Agropescas, que acabou extinto em função do clima e de uma patologia que vitimou os camarões.

– Em 1992, foi projetada a criação de um complexo esportivo intitulado Florianópolis Golf Clube. O empreendimento não se concretizou.

– Em março de 2010, foi finalizado o projeto Carijós, que seria um complexo residencial e comercial de múltiplos uso, mas que foi engavetado devido à iminência do novo Plano Diretor, aprovado em dezembro de 2013.


“Nossa luta é política e ideológica”

Líder que já participou de movimentos semelhantes no passado diz que proposta do grupo é de melhoria social

Diário Catarinense – Por que vocês escolheram justamente este terreno às margens da SC-401?

Rui Fernando – A escolha deste terreno se deu principalmente pela irregularidade de posse e propriedade da área, que é justamente o que estamos levando para o âmbito jurídico. Trata-se de uma terra grilada.

DC – O terreno fica de frente para uma das rodovias mais movimentadas da cidade. Vocês levaram isso em consideração também?

Fernando – É óbvio que numa luta temos que ver todas as questões geográficas. Não vou negar que o fato de estarmos justamente nesse terreno, de frente para SC-401, favorece a nossa luta por conta da visibilidade, por ser um ponto estratégico da cidade com muita circulação.

DC – Então o local foi pensado estrategicamente?

Fernando – Entendo que neste tipo de situação temos que considerar todas as ferramentas que temos para cumprir nossos objetivos, que são propostas de melhoria social. Neste caso a questão geográfica, o posicionamento da área, influencia positivamente na luta.

DC – A data escolhida também foi pensada, já que é uma época com muita circulação de turistas…

Fernando – Quando optamos por essa área, sabíamos também com quem estaríamos lidando. Aqui é um ponto representativo da nata da oligarquia da cidade, pessoas poderosas economicamente falando. Sabemos que estas pessoas tentarão de diversas formas acabar com o movimento. Então é lógico que tudo isso pesou nas nossas escolhas.

DC – O senhor já participou de outras ocupações semelhantes. Inclusive em 2010 foi detido pela polícia em uma ocupação do MST. O senhor é um profissional neste tipo de trabalho?

Fernando – Olha, nossa luta é política e ideológica. A questão do profissional não cabe como definição nas mesmas regras do mercado. Na prática, dentro deste tipo de luta, os coordenadores têm sim uma bagagem em movimentos sociais. Não vemos a coisa de um ângulo profissional. O que pesa é convicção política. Ajudamos o povo a se organizar e lutar pelos seus direitos. As diferenças sociais neste país são muito grandes.

DC – Em 2010, quando o senhor foi detido, era ano eleitoral. Agora estamos novamente neste período. Esta é uma época propícia para ocupação?

Fernando – Eu não tinha feito essa relação entre 2010 e 2014. O fato de ter sido num ano eleitoral, foi coincidência. Mas, durante a luta, temos que ver todos os elementos. Não temos objetivos eleitorais com isso. Mas, de fato, esta é uma época de vulnerabilidade do governo.

DC – Como os manifestantes pretendem usar a terra caso vençam na Justiça?

Fernando – O principal objetivo é a construção de um assentamento autossustentável de produção agroecológica, compatível com nossa luta que é terra, trabalho e teto. A terra para produzir alimento para o povo, trabalho para gerar renda ao povo e teto representa um espaço digno para as pessoas poderem morar.

DC – Mas o que especificamente se planeja fazer com essa terra?

Fernando – Na audiência de conciliação iremos apresentar nossos projetos. Olha, sabemos que 60% a 80% deste terreno é de área agricultável. As culturas que iremos desenvolver serão variadas. Já começamos com cultivo de hortaliças. Iremos também desenvolver a criação de alguns animais, como um galinheiro, que nós já começamos a introduzir.

DC – Essa produção será apenas para consumo próprio ou se pretende comercializá-la?

Fernando – As duas coisas. Num primeiro lugar é para soberania alimentar da família. Mas também trabalhamos com a perspectiva de comercialização dos produtos. A região também favorece a logística, pois fica próxima do Norte da Ilha, que em alta temporada demanda estes tipos de produtos. A localização aqui representa um bom ponto.

DC – Nessa audiência do dia 7 de fevereiro é possível encontrar um acordo?

Fernando – É possível sim. Já acatamos a decisão judicial de entregar o cadastro das famílias e fechar as porteiras em respeito ao trâmite judicial.

DC – E se a Justiça determinar a imediata reintegração de posse. O que vocês pretendem fazer? Já têm outro lugar em vista?

Fernando – Primeiro que não acreditamos nessa possibilidade. Estamos acompanhando a Justiça agrária em SC há alguns anos e até agora, em nenhum momento, não houve nenhum tipo de desocupação forçada. Resumidamente, confiamos no bom senso da Justiça.

O principal objetivo é a construção de um assentamento autossustentável.


“Que a propriedade seja respeitada”

Advogado de Artêmio Paludo diz que manifestantes invadiram terreno e residência, de onde usam serviços de água e luz.

Diário Catarinense – O que o senhor está preparando para a audiência de conciliação? É possível chegar a um acordo?

Sérgio Tajes Gomes – Não tenho dúvidas que um acordo pode ser alcançado, dentro dos critérios que respeitem a propriedade e que possibilitem a saída dos invasores de uma forma menos traumática no menor prazo possível, o que eu acredito ser algo em torno de 10 a 15 dias.

DC – E se os manifestantes se recusarem a sair pacificamente?

Gomes – Aí a Justiça tem que agir com o rigor que a lei exige. Os órgãos municipais, Polícia Militar, todos já foram notificados e irão participar da audiência. O juiz naturalmente vai buscar uma desocupação ordenada e sem nenhum tipo de violência. Mas… se isso não acontecer, o que a lei manda fazer? Força policial para desocupar o que ilegalmente está sendo ocupado. Então é esperar que o direito de propriedade amparado pela Constituição seja efetivamente respeitado.

DC – Quanto ao direto de terra dos manifestantes?

Gomes – Uma terra que não seja a nossa. O direto constitucional deles precisa ser visto e analisado. Agora, dentro de princípios que não firam a propriedade de terceiros. A cidade, o Estado, o Brasil têm muita terra sobrando. Ninguém quer ir lá para plantar. Todo mundo quer vitrine. Beira do mar, de preferência às margens da SC-401.

DC – Há a possibilidade dos manifestantes terem escolhido justamente o terreno de Artêmio Paludo, uma vez que ele foi deputado estadual pela Arena e representa interesses divergentes dos ocupantes?

Gomes – Acho que os manifestantes nem conhecem esses fatos, para ser sincero. Tem muita gente que está lá que nem era nascido na época em que Paludo foi deputado.

DC – Este terreno cumpria alguma função social no momento da ocupação? Isso não deveria ser considerado no debate?

Gomes – De jeito nenhum. Aquilo ali não é uma área rural. É uma área urbana, com IPTU e tudo. O que houve ali foram dois crimes: invasão da área e invasão de residência.

DC – Como assim dois crimes? Por que invasão de residência?

Gomes – Porque ali nós temos uma casa, uma residência. O cidadão que mora lá não estava na casa quando ocorreu a ocupação. A casa estava fechada e foi arrombada. Isso nos foi dito. Imagine que você tem um apartamento na Beira-Mar e ao retornar encontra a porta arrombada e a casa invadida. Estamos dependendo do Judiciário para tirar essas pessoas de dentro da residência onde tem água da Casan, luz da Celesc. Além de estarem invadindo o terreno, também estão utilizando esses serviços.

DC – Como vocês verificaram que houve essa invasão de domicílio?

Gomes – Quando o Artêmio foi lá, viu que a casa tinha sido arrombada e já não pôde entrar. Ele foi à polícia, abriu Boletim de Ocorrência. Se a polícia tivesse tomado uma medida e tirado as pessoas na hora da invasão, o problema não chegaria a este tamanho.

DC – O terreno estava sendo utilizado exatamente para qual finalidade antes da ocupação?

Gomes – O terreno estava arrendado para uma pessoa que criava gado no local, enquanto aguardava aprovação do uso da terra de acordo com o Plano Diretor. Qualquer tipo de empreendimento na área depende de autorização do município. Como nós tínhamos em trâmite um novo Plano Diretor sendo discutido, nós não podíamos fazer absolutamente nada sem ter a noção exata do que seria permitido para fazer ali.

DC – E nunca foi planejado o plantio e cultivo de alguma outro produto para aproveitar o terreno enquanto nenhum grande empreendimento era realizado nele?

Gomes – Não dá. Nós tentamos a criação de camarão. E depois disso houveram outros projetos, entre eles o campo de golfe, que acabou não dando resultado.

DC – Mas há grandes intervalos de tempo entre um projeto e outro. Neste período a terra não podia ser aproveitada de alguma forma?

Gomes – Assinamos em 1995 um contrato com o Grupo Habitasul para a implantação de um projeto urbanístico. Os projetos foram sendo desenvolvidos e então no final de 2000 renovamos com a empresa por mais cinco anos. Durante estes 10 anos os projetos foram feitos e desenvolvidos, mas não houve implantação. No final de 2005 houve o rompimento desse contrato. Então aguardou-se o novo Plano Diretor para novos projetos. Durante esse tempo todo, diversos estudos foram feitos que evidentemente visam o melhor aproveitamento da área.

Dependemos do Judiciário para tirar essas pessoas de dentro da residência.


“É um nova forma de luta que se coloca”

A audiência de conciliação marcada para o dia 7 de fevereiro pelo juiz Jefferson Zanini irá contar com a presença das partes envolvidas e representantes da Polícia Militar, Funai, Incra e as secretarias municipais de Habitação e Ação Social. O magistrado diz que seu intuito é resolver o conflito rapidamente e de forma consensual. O mesmo defente o ouvidor agrário do Incra, Fernando de Souza, que está fazendo a mediação junto ao movimento.

Ouvidor diz que fato de terras serem consideradas urbanas não impede a participação do Incra nas negociações e que seu papel é garantir a paz e

a segurança no local.

Diário Catarinense – Como o senhor está se preparando para a audiência do dia 7 de fevereiro?

Fernando Lúcio de Souza – Pretendo auxiliar o juiz agrário na conciliação do litígio e tenho certeza que teremos êxito. O objetivo é que saia um bom acordo para as duas partes.

DC – Aquele terreno está situado numa área urbana. Por que o Incra, que lida com questões rurais, está envolvido?

Souza – Estamos envolvidos porque o juiz da Vara Cível transferiu o trabalho para o juiz agrário, que, em todas as ocupações que ocorrem no Estado com movimentos sociais rurais, convoca a ouvidoria do Incra para auxiliar nessas situações.

DC – Mas pelo fato de o terreno estar numa área urbana, o Incra tem competência para prestar este auxílio?

Souza – O que define área urbana ou rural não é o fato de o terreno estar dentro da cidade ou não. É a característica da área e isso já é um entendimento do Superior Tribunal Federal. Não há necessidade de uma área estar dentro da cidade para ser considerada como rural. Agora, neste caso, o Incra só está atuando devido ao fato do juiz agrário ter solicitado auxílio para sanar o conflito.

DC – O senhor já disse em outra ocasião que irá encontrar uma maneira de resolver isso na Justiça de modo que os direitos dos ocupantes sejam garantidos. E se a Justiça determinar a saída imediata dos manifestantes?

Souza – Aí você deveria perguntar para o movimento social, eu não respondo por eles. Se o juiz expedir a reintegração de posse imediata aí é o movimento que vai decidir quais o rumos que irão tomar. A minha função é garantir a paz naquele local, segurança e ordem judicial até o momento da audiência. O Incra só está auxiliando o poder Judiciário na conciliação. As famílias devem cumprir a determinação judicial.

DC – Corre-se o risco dessas pessoas resolverem não sair e isso ocasionar um conflito. O Incra não tem responsabilidade nisso também?

Souza – Vamos fazer isso na audiência, para evitar qualquer risco. Isso vai ser colocado para os proprietários e o movimento social, as possibilidades. Mas a maior responsabilidade é do movimento. Se aquelas pessoas optarem por descumprir a ordem, a responsabilidade é delas.

DC – Ao que parece será difícil entrar em um acordo entre as duas partes. Como o senhor irá atuar para que isso seja possível?

Souza – A luta pela reforma agrária é justa, agora não é especificamente ali que eles vão ficar. Então se eles querem a área, terra para reforma, eles terão que aguardar como qualquer outra família. Este é um movimento novo. Este pessoal busca o que ficou conhecido como “cinturão verde”, produzir e abastecer a cidade onde eles estão. É uma reforma agrária urbana, vamos dizer assim.

DC – Esse movimento não configura um desafio para o Incra, já que é um órgão que lida diretamente com questões agrárias?

Souza – Aqui em SC é um desafio. É uma nova forma de luta que se coloca. Mas a metodologia que usamos para resolver outros conflitos, como MST por exemplo, será a mesma.

DC – Por se tratar de algo novo, não seria mais adequado uma nova metodologia?

Souza – O mesmo método, porque na origem eles estão em busca de párea rural, indiferente de ser dentro da cidade ou fora.

Este pessoal busca o que ficou conhecido como “cinturão verde”, produzir e abastecer a cidade onde eles estão.


” Busco uma solução rápida para o conflito”

Juiz aposta que audiência de fevereiro será suficiente para solucionar o caso e que só vai se manifestar sobre decisão caso não haja consenso entre as partes.

Diário Catarinense – A área onde está situado o acampamento é tida como urbana. Isso não estaria fora da competência da Justiça Agrária?

Jefferson Zanini – Em virtude da reivindicação feita pelos acampados, que querem que a terra seja transformada em assentamento para fins de reforma agrária, com regime de economia familiar, o juiz anterior entendeu por transferir o trabalho para a Justiça Agrária, que atua nos conflitos coletivos em que há disputa de terra. Acabei aceitando para evitar morosidade e buscar uma solução mais rápida para o conflito.

DC – E quanto a eventuais problemas jurídicos pela área ser considerada urbana e não rural?

Zanini – Não é questão de competência, mas meramente distribuição de atividades entre os juízes de uma mesma hierarquia. Quando a essa questão, uma vez aceita e não havendo oposição entre as partes, acaba ocorrendo o que chamamos de “prorrogação de competência”, mantendo a competência na Vara Agrária. O procedimento a ser seguido e as leis que serão aplicadas são as mesmas. Por isso não causa prejuízo às partes o fato de o processo tramitar na Vara Agrária e não na Cível da Capital.

DC – Este conflito concretiza um choque de princípios constitucionais, pois dois direitos fundamentais (o direito à terra e à moradia e o direito à propriedade) estão em jogo. Como o juiz lida com isso?

Zanini – Temos o conflito desses dois direitos fundamentais garantidos na Constituição. Meu trabalho enquanto juiz agrário é tentar harmonizar esses direitos, fazer com que um não anule o outro. Vamos fazer um trabalho de conciliação e espero que através dessa medida a gente consiga chegar a um acordo na audiência para que os dois direitos sejam protegidos e assim seja possível alcançar um consenso entre ambas as partes.

DC – Mas as duas partes até agora se mostraram completamente divergentes. Como será realizada essa harmonização?

Zanini – Não há uma fórmula rígida sobre isso. Estamos na fase de coleta de informações, colhendo isso com os órgãos públicos envolvidos e também em conversas com o ouvidor agrário juntamente às pessoas que estão acampadas. Então a partir desse levantamento de dados iremos encaminhar essa conciliação.

DC – O Ministério Público já emitiu parecer favorável à reintegração de posse. O senhor pretende se basear nesta opinião?

Zanini – Vou estudar o processo após a audiência caso não seja possível a conciliação, e aí sim pronunciar qual será minha decisão. Mas por enquanto não cogito esta segunda parte. Estou apostando todas as fichas numa solução consensual, amigável, de todo esse litígio.

DC – E se chegar a um ponto em que o conflito físico seja iminente. O que a Justiça pode fazer?

Zanini – A importância da conciliação não é só a solução do processo, aquilo que está submetido ao Judiciário, mas também se busca resolver a causa anterior, que é o conflito que foi instaurado. Se conseguirmos chegar a uma conciliação, ela acaba afastando qualquer possibilidade de conflito entre as partes. Por enquanto não penso em qualquer outra medida a ser decretada. Tenho esforços centrados na resolução consensual.

Vamos fazer um trabalho de conciliação e espero que a gente consiga chegar a um acordo.

(Diário Catarinense, 31/01/2014)