25 nov Agricultores urbanos
O bairro Monte Cristo é um dos mais pobres e feios de Florianópolis, a linda capital catarinense, conhecida por suas praias e qualidade de vida. Ali, na porção continental da cidade, às margens da rodovia que se liga à ponte que dá acesso à “ilha da magia”, vivem 35 mil pessoas que fazem “mágica” para sobreviver. Houve um tempo em que ratos infestavam a comunidade Chico Mendes, uma das 12 que compõem o Monte Cristo, tornando-se mais um grave problema para essa região carente, exposta às drogas e à violência.
A leptospirose, transmitida pela urina dos roedores, matou duas crianças em 2008. Foi quando floresceu um projeto social desses que são ao mesmo tempo simples e engenhosos, capazes de mobilizar e agregar pessoas e cujos resultados superam a solução do problema original. O projeto Agricultura Urbana – A Revolução dos Baldinhos acabou com os ratos tirando-lhes o alimento, pois criou a cultura da coleta seletiva de lixo. A tecnologia agrícola e bastante trabalho transformaram o lixo em excelente adubo orgânico. Ele é usado para cultivar hortaliças, temperos, flores e até frutas em vasos, potinhos, carcaças de televisores ou entre as pistas da movimentada rodovia.
A Revolução também deu rumo para gente de trajetória errática, como Rose Helena Oliveira de Souza, uma gaúcha de 38 anos que vive no Monte Cristo desde 1994, com os filhos de 20, 13 e 7 anos, o mais velho preso, todos de pais diferentes – nenhum presente. “Ofereço dedicação total ao projeto e sei que faço diferença na vida das pessoas”, diz a agente comunitária, que vive com pouco mais de R$ 500 da bolsa vinculada ao projeto.
Marcos José de Abreu, o Marquito, de 31 anos, é o articulador da Revolução. Engenheiro agrônomo dedicado à permacultura, isto é, à construção de ambientes humanos sustentáveis, ele coordena os projetos urbanos do Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro), uma ONG de Florianópolis voltada à disseminação da agroecologia. Abreu atuava na Chico Mendes desde 2005, quando ainda era estagiário da Cepagro e desenvolvia hortas orgânicas na escola e na creche. Conhecido pelas lideranças locais, foi chamado quando estourou a crise dos ratos.
“O médico do posto de saúde foi quem primeiro falou em revolução dos baldinhos, termo que acabou nomeando o projeto”, lembra Marquito. A ideia era distribuir recipientes plásticos aos moradores – os baldinhos – para que levassem seus restos de comida a locais adequados. Mas para onde? E o que fazer com o lixo acumulado? O Cepagro tinha as respostas. E tinha acesso a convênios para projetos de agricultura urbana que permitiram contratar pessoas e comprar materiais. “Não dá para dizer que a ideia é de alguém, trata-se de uma construção coletiva, que envolveu toda a comunidade desde o início”, diz Marquito, que se define como “animador” do projeto.
No início, havia dois agentes comunitários. A equipe distribuía bombonas de 50 litros com tampas pelas ruas, para que os participantes depositassem nelas o lixo sem deixá-lo exposto. Depois, recolhiam tudo em um carrinho e levavam para o pátio da escola, para aplicação da técnica de compostagem termofílica de leira estática. Grosso modo, trata-se de fazer montes de lixo orgânico sobre uma cama de palha e galhos, contidos por paredes também de palha.
Daí se misturam esterco, serragem e cobre-se tudo com mais palha, para que se dê o ataque de bactérias e fungos termofílicos (que vivem em temperaturas elevadas) e a quebra do material orgânico. As leiras são periodicamente realimentadas e em três meses se obtém húmus. Logo o projeto foi ganhando corpo e novos parceiros. A Comcap, empresa que cuida da limpeza da cidade, disponibiliza funcionários e um veículo para coletar, duas vezes por semana, as bombonas cheias. O Ceasa manda a palha que resta dos caixotes de frutas.
A Polícia Militar envia esterco de seus cavalos e serragem. O pátio da escola ficou pequeno, e as leiras acabaram ocupando um terreno da Cohab, enquanto se negocia a cessão de uma área da prefeitura. Mas o crucial para o crescimento do projeto foi o envolvimento comunitário.
Hoje em dia, moradores de 250 residências separam o lixo e o depositam em um dos 43 pontos de entrega, perfazendo 14 toneladas mensais. O adubo produzido é distribuído entre os participantes e alimenta as hortas comunitárias do colégio e da creche. As vizinhas Terezinha da Conceição, de 60 anos, e Terezinha Vaz, de 53, estiveram entre as primeiras a aderir aos baldinhos. Antes, uma jogava no quintal da outra o lixo, que, mal enterrado, era revirado por animais.
Hoje, Terezinha Vaz cultiva em seu quintal uma das hortas mais vistosas da comunidade Chico Mendes, bem em cima do antigo depósito de lixo. Ela tem cebolinha, beterraba, pepino, couve-mineira, chuchu, tomate e pimenta-malagueta, e já preparou a estrutura para plantar maracujá, tudo com a orientação técnica de Marquito e da equipe do projeto.
Atualmente, os agentes comunitários são seis. Maicon William de Jesus, de 22 anos, foi convidado por Rose Helena para compor o “Rap do baldinho”, executado em eventos para convocar o povo à coleta seletiva. Komay Maf (sigla para “Mente Ativa Floripa”), que é como Maicon se apresenta nos palcos, cumpriu a missão e acabou ele próprio se tornando um agente, juntamente com a esposa, Jéssica, de 18 anos. Mente Ativa esteve preso por mais de dois anos devido a um assalto ao McDonald’s. Hoje, exerce uma liderança positiva na comunidade.
José Isac Melo de Jesus, de 19 anos, o Isac PA, tornou-se seu seguidor e parceiro no hip hop, além de voluntário na Revolução, agregando-se aos agentes para carregar lixo e revirar as leiras. Eis um autêntico milagre no Monte Cristo: do lixo repulsivo, os moradores extraíram dignidade. A equipe do bairro foi até à Itália apresentar o projeto, no encontro de 2010 do movimento Slow Food, que apregoa a agricultura alternativa e a reeducação alimentar.
Marquito quer levar a Revolução para toda a comunidade. Para isso, precisa contar com outros 20 agentes, mas o apoio da Eletrosul, que termina em novembro, é insuficiente. Tenta obter da prefeitura pagamento pela destinação adequada do lixo, um serviço pelo qual o poder público paga caro para empresas realizarem.
“Desenvolvemos um sistema de gerenciamento comunitário de resíduos, descentralizado, eficiente e que gera valor para a comunidade”, argumenta. Marquito tem fé no projeto porque acredita que a agricultura é inerente ao ser humano. No caso dele próprio, isso é incontestável. Se seu pai abandonou a roça para se tornar pedreiro em Florianópolis, ele promoveu a agricultura em frestas e desvãos de um amontoado de casas plantadas no concreto áspero do Monte Cristo. Talvez pensasse nisso enquanto remexia uma leira e torcia pela chuvinha que começava a cair, perfeita para o telhado verde que instalou em sua casa neste início de primavera.
(Globo Rural, 04/11/2011)