22 nov Uma Ilha chamada Meiembipe, uma cidade chamada Florianópolis
Artigo de Cesar Floriano, arquiteto e urbanista (Rio de Janeiro, 2011)
Ao terminar de ler o livro “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra” do escritor moçambicano Mia Couto, uma obra prima da literatura contemporânea, pensei na nossa ilha querida ilha de Meiembipe. O livro narra a trajetória do jovem Mariano, protagonista da história, que retorna a sua terra natal, a ilha Luar-do-chão, para coordenar os procedimentos, comuns às famílias moçambicanas, da morte do seu avo, o velho Dito Mariano. Ao chegar à ilha, tomou conhecimento, de forma inusitada, dos mistérios que rodeiam o morto, a família e o lugarejo de sua infância. Esta história que me comoveu de forma marcante, primeiro pela impecável narrativa e em segundo por suas metáforas, me serve de partida para refletir sobre o processo de ocupação e urbanização da Ilha de Santa Catarina.
Depois de anos afastado do convívio familiar e da ilha, o jovem Mariano se depara com a destruição do patrimônio cultural e a venda das terras ancestrais. A especulação imobiliária, promovida em nome da modernização, do progresso e desenvolvimento, contaminam todas as relações sociais e os valores determinantes da estruturação simbólica da família. Em resposta a esta situação, uma seqüência de mistérios ronda a ilha Luar-do-chão, o funeral persiste em não se consumar, um mundo mágico vai se configurando e um morto vivo busca no jovem Mariano a possibilidade de resgate dos valores em risco. A terra em protesto da destruição do espírito do lugar se fecha para o sepultamento do avo. O coveiro tenta cavar, cavar, mas seu gesto, para o desespero da família, é inútil, o chão havia se tornado rocha. A terra mãe ilha, lugar dos ancestrais, se negava a receber o morto, seu fechamento é revolta, protesto e uma condenação aos vivos.
Este conto me fez pensar na Ilha de Santa Catarina, a destruição dos lugares sagrados, da paisagem cultural e a venda para o setor especulativo da paisagem natural. A Ilha como mercadoria, nos últimas décadas, teve sua venda anunciada, travestida de desenvolvimento e progresso. E em nome de um desenvolvimento especulativo, parte do patrimônio foi desfigurado ou destruído. Embora a máquina especulativa tenha atuado de forma agressiva sobre o território, agenciado por um Plano Diretor equivocado e pernicioso, grande parte dos elementos da paisagem cultural da ilha se mantém preservados e devem ser o objeto central de um planejamento sustentável e do novo Plano Diretor em construção.
Nas ultimas décadas, alguns equívocos de planejamento e inserções promovidas por um urbanismo e uma arquitetura “tacanha”, provocaram uma desfiguração irreparável no perfil da cidade histórica e portuária. Ter construído o aterro afastando a cidade histórica do mar foi um erro irreparável, mas ter destruído o parque de Roberto Burle Marx, como continuidade da Praça XV foi uma ignorância cultural absurda. A verticalização e a ocupação desenfreada por todo o território da ilha é um desastre ecológico que tem que ser estancado imediatamente. Operação possível, mas somente a partir de uma mudança de paradigma na forma de pensar o crescimento urbano da cidade de Florianópolis e a ocupação do território da ilha. Faltou e falta para os gestores a compreensão de conceito de “insularidade”. Isto é, compreender a configuração lha como caráter do lugar, marcada por um território finito delimitado pelo mar.
Compreender que é a condição de ilha que nos diferencia das demais cidades e determina nossa condição histórica. Pensar uma cidade dentro desta paisagem ilha é pensar uma cidade ilha. A Ilha de Santa Catarina, em praticamente na sua totalidade, é uma paisagem cultural que deve ser gerenciada por instrumentos avançados de urbanismo sustentável, um modelo que permita a ativação econômica sem criar desfiguração da cultura. Neste sentido, a cidade de Florianópolis não pode ser pensada como uma grande cidade capital a partir da ilha, ela tem que surgir no continente, é na sua parte continental que ela pode se afirmar como metrópole. Temos que pensar em uma cidade dividida, múltipla, polinucleada.
A cidade continental deverá ser a grande prestadora de serviços, pólo de desenvolvimento regional e peça indutora do crescimento metropolitano. Não precisa ter grandes conhecimentos em urbanismo nem bola de cristal para antever esta realidade, Palhoça, São José, Biguaçu e Tijucas irão compor um grande corredor metropolitano. É urgente preparar o continente para esta realidade, criar infra-estrutura para agenciar todo o crescimento que irá explodir nos próximos 30 anos nestas cidades. Transferir o aeroporto para Tijuquinhas, levar parte da maquia do estado e rodoviária, para o continente seriam algumas atitudes indutoras deste processo.
Para pensar a cidade ilha é preciso construir um plano diretor de paisagem, uma lei de paisagem rigorosa, que iniba as grandes obras de impacto. Uma lei de paisagem que preserve as visuais, os espaços perspectivos, os cones visuais, vias panorâmicas, lugares de memória, bordas d’água, trilhas, mirantes e as planícies. Na ilha a altura máxima não deveria passar de 4 pavimento e o modelo do urbanismo baseado em lote residencial deveria ser evitado. Esta forma de ocupação é predadora para o desenho de paisagem, além de criar ruas sem definições de espaços públicos, serviços, unidades de vizinhança, alimenta a cultura dos puxadinhos e máxima ocupação do território. O modelo residencial proposto por parte do movimento social vai contra a idéia de sustentabilidade urbana.
A perspectiva de desenvolvimento para a ilha está em potencializar sua estrutura paisagística, criar uma série de eventos que dinamizem as bordas dágua em todos os seus níveis, gerando espaços públicos de laser, parques e dinamização cultural. Ativar percursos paisagísticos em diferentes escalas, trilhas, teleféricos, mirantes. Ativar o centro histórico como um corredor cultural, criando leis de incentivo para funcionamento de cinemas, restaurantes, clubes, albergues, livrarias e todos os serviços que dinamizem o setor 24 horas, o centro da cidade tem que ter vida noturna e para isto é preciso uma atitude política. A cidade ilhoa para ser viável e aprazível tem que levar em consideração seu limite de escala. Estamos no momento crítico, não podemos mais errar.
Voltando ao texto de Mia Couto, fico pensando no fantástico que seria, se a terra mãe meiembipe, em rocha impenetrável se transformasse, impedindo novas estacas para construções, sinalizando em revolta que é preciso pensar a terra como suporte da vida e a paisagem cultural como condição e princípio de ocupação do território ilha de Santa Catarina.