04 abr O lado obscuro da reciclagem. Mercado clandestino alimenta o consumo de crack em Florianópolis
Mercado clandestino de materiais recicláveis alimenta consumo e tráfico de drogas nas maiores cidades da Grande Florianópolis
Alternativa de renda para as camadas mais empobrecidas da população brasileira, a reciclagem se transformou também em elo entre o mercado clandestino de metais, o tráfico e o consumo exacerbado de crack, a droga da decadência. Nas mãos de viciados, peças de alumínio, antimônio, ferro e, principalmente, cobre viraram moeda de troca de baixo valor nos galpões de ferro velhos irregulares, comércio que movimenta a economia mais que informal, obscura, do submundo de médias e grandes cidades.
Florianópolis e municípios vizinhos não fogem à regra. Cabos e demais componentes elétricos de pontes e avenidas, partes metálicas de abrigos de ônibus, caracteres de túmulos, caixas de correios, chapas de fechaduras, tampas de bueiros e de hidrantes. Qualquer peça metálica é garimpada com a mesma compulsão que mantém a chama efêmera do cachimbo mortal.
Segundo o tenente coronel Araújo Gomes, comandante do 4º BPM (Batalhão da Polícia Militar), não existe formas de prevenção, nem de controle do comércio clandestino de recicláveis. “A reciclagem tem importante papel ambiental, social e econômico, mas gera, também, insalubridade e alimenta esta casta de drogados que se prolifera pelos pontos degradados da cidade”, avalia.
A informalidade é outro obstáculo ao controle do negócio clandestino. Como não há mecanismos de controle, como nota fiscal ou recibo, os recicladores legalizados são orientados a exigir documento de identidade e CPF dos vendedores, o que nem sempre acontece. “Ninguém exige nada, apenas pechincham para pagar preço mais baixo”, confirma Alex, um dos viciados encontrados na tarde de quinta feira na Via Expressa Continental.
Perversidade urbana
Estudioso das causas da criminalidade urbana, Araújo Gomes entende que o crack não tem sido perverso apenas com quem fuma, mas, principalmente, com a cidade. “Como a compulsão é muito forte, o viciado fica o tempo todo próximo às áreas de tráfico, fazendo caixa rápido por meio de esmolas, pequenos furtos e assaltos e reciclagem.”
A concentração de drogados acaba expulsando as famílias dos espaços públicos, causando degradação urbana e decadência comercial. “O traficante acaba se estabelecendo também nestas áreas, explorando os guetos de drogados e ampliando o ciclo vicioso da reciclagem clandestina e do tráfico”, diz.
A reorganização urbana e o reconhecimento da epidemia pela saúde pública, segundo o coronel, são ações fundamentais no enfrentamento ao crack. “Espaços públicos precisam ser revitalizados e planejados de forma que facilitem a visualização de seus freqüentadores”, sugere o comandante.
Família substituída pela tubulação de esgoto
Olhos esbugalhados, roupas e corpo imundos, Alex tem apenas 25 anos, mas quase não se lembra da própria idade, nem das coisas boas que deixou para trás quando experimentou a primeira pedra, aos 19. Há seis anos fora de casa, o menino pobre que nasceu na área rural de Biguaçu hoje perambula sem rumo pelas ruelas que interligam a avenida Ivo Silveira à Via Expressa, no já apelidado “vale do crack.
De pouca conversa, a angústia está estampada no rosto magro. Encontrado na tarde de quinta-feira nas proximidades do viaduto da avenida Josué di Bernardi, em Campinas, Alex ficou pelo menos 30 minutos fumando o cachimbo da morte, sentado numa lasca de granito e encostado no muro de uma casa comercial, alheio à irritação dos motoristas na fila da Via Expressa. Tem saudade da mãe e dos irmãos, mas não vai visitá-los porque a família perdeu a confiança nele. “Agora, me viro mangueando (pedindo esmolas) e com a reciclagem, mas já roubei muitas coisas em casa”, confessa.
A 50 metros dali, outros dois homens aparentando a mesma idade de Alex passam com um punhado de fios elétricos nas mãos. Caminham rápido e desaparecem na tubulação da rede de esgoto, ao lado do viaduto da Josué di Bernardi. O ambiente fétido não impede que permaneçam no escuro o tempo suficiente para cachimbarem e curtirem a paranóia provocada pela droga.
Depois, saem em busca de mais metais e outros materiais de baixo valor – plástico e papelão – moeda de troca nos galpões clandestinos de reciclagem que se proliferam nos limites das duas maiores cidades da Grande Florianópolis.
Celesc gasta R$ 100 mil por ano em Florianópolis
A despesa da Celesc com reposição de cabos e componentes elétricos metálicos chega a, pelo menos, R$ 500 mil nos últimos cinco anos. O cálculo é do engenheiro Flávio Fernandes, gerente de manutenção do consórcio SQE (Sadenco-Quantun-Enerconsult), gestor da iluminação pública em Florianópolis.
O tráfico e o consumo de crack desenfreados em áreas públicas degradadas nos bairros ou centro das maiores cidades da região são itens desta matemática, de acordo com Fernandes. “Há também o furto especializado, aquele praticado em redes aéreas por ladrões especializados, com carro e equipamentos de segurança, que visam o lucro. Mas, na maioria dos casos, os sinais deixados denunciam ação de pessoas despreparadas”, diz Fernandes.
Os sinais deixados pelos craqueiros são cortes feitos a facão ou faca em redes de baixa ou alta tensão, como ocorreu na fiação subterrânea da avenida Almirante Tamandaré, em Coqueiros. Os cabos elétricos das pontes Pedro Ivo e Colombo Salles, ligações entre Ilha e Continente, têm sido outra fonte da matéria prima que alimenta o exército de zumbis que na calada da noite se arrisca a manusear redes energizadas para alimentar o vício. “Há casos de acidentes graves, alguns fatais”, alerta o engenheiro.
Para reduzir a conta, o consórcio SQE adotou algumas medidas preventivas em Florianópolis. Foram adotados procedimentos operacionais para dificultar os furtos de fios e componentes. Projetos de iluminação de áreas públicas agora priorizam as redes subterrâneas, caixas de passagens de condutores de energia e de entrada e saída de eletrodutos passaram a ser chumbadas em concreto. “Estas medidas, mais a ação preventiva e repressiva da polícia tem ajudado na redução destes casos, mas a situação realmente é grave”, diz Flávio Fernandes.
(ND, 04/04/2011)