01 ago Como nascem nossas ruas
“Nós temos também muita falta de escrúpulos de determinadas parcelas da população. E aí não tem nada a ver com classe social. Quando fui vereador, de 77 a 82, no Distrito do Rio Vermelho nós tínhamos a estrada geral do Rio Vermelho, que é a João Gualberto Soares, e tínhamos um caminho de carro de boi, paralelo, que é o Travessão. Na época, nem constava do sistema viário da cidade. Entre uma e outra estrada, não havia nenhuma ligação, nenhuma rua. Isso há 25 anos. Atualmente nós temos lá 58 ruas ou servidões, todas com uma média de mil a dois mil metros de comprimento e nenhuma aberta pela prefeitura ou com a anuência da prefeitura. E como é que funciona isso? O sujeito tem uma gleba de terras. Simplesmente, num final de semana, mete uma máquina lá, abre uma picada, loteia, vende sem infra-estrutura e, depois, o pessoal faz um abaixo assinado pedindo as benfeitorias. Ao fazer uma rua assim, vendendo, então, tudo isso em 30, 40, 50 lotes, o loteador desaparece e aí surge a figura do cidadão de boa-fé, entre aspas. Na verdade, todo mundo tem uma parcela de responsabilidade.” Chico Assis – O Estado – 26/27.05, em entrevista sobre a Operação Moeda Verde.
Segundo teorias urbanísticas universalmente. consagradas, ruas não brotam do chão como capim, por geração espontânea. Para serem legais, as ruas devem nascer de duas formas: 1) Previamente planejadas e projetadas no Plano Diretor e executadas pelos órgãos públicos; 2) ou por iniciativa de empreendedores privados… cumprindo toda a legislação pertinente. E o Plano Diretor da cidade.
O problema é que, em Floripa, essas opções formais estão condenadas à extinção, junto com um grande percentual de áreas de proteção ambiental. Por quê? Por absoluta “falta de tempo”: enquanto os empresários movem-se pela lerdeza do poder público e seu cipoal legislatório – um elefante de ressaca arrastando um trem fora dos trilhos, mesmo quando o paquiderme se dispõe a agitar o rabinho em troca de propina -, enormes parcelas da população se associam a loteadores clandestinos em sua especialidade de ocupação dos espaços em tempo recorde, porque sem qualquer critério.
Observe bem a imagem que ilustra este texto: ao centro, uma ilhota de legislação caprichosamente respeitada, cercada por todos os lados pelo caos promovido pelo “interesse social clandestinamente correto”. Como sempre, tomamos o Rio Vermelho como modelo. Mas isso é só uma questão prática: o flagrante poderia ser de qualquer outro bairro de Florianópolis: da Lagoinha do Norte até a do Leste, passando pela Costa da Lagoa e a Tapera. Em toda a Ilha, a imagem da cidade é a mesma.
Vejam só: o Rio Vermelho tem cerca de 110 ruas e mais de 90% delas resultado de parcelamento clandestino do solo e ocupação irregular, à revelia do Plano Diretor da cidade, que data de 1985. São 22 anos em que, ao invés de a ocupação orientar-se pelo zoneamento estabelecido, o Plano Diretor é que vem tendo que ser alterado, em larga escala, para adaptar-se à tal “situação consolidada” da urbanização “espontânea”.
As regras básicas para arruamento são praticamente as mesmas, de 1985 até hoje – até porque, não há que reinventar a roda. No entanto, a esmagadora maioria das ruas em Floripa não passa de picadas. Elas continuam sendo abertas pelo modelo pós-sesmarias das servidões manézinhas, com a histórica recusa dos nativos em acatar uma modelação urbanística: sem pavimento, sem calçada, sem os serviços básicos de água e luz, sem transversais, sem áreas de lazer. Coisas que “o governo é que tem a obrigação de dar ao povo”. E dá-lhe pressões políticas: recomendações, compadrios, abaixo-assinados, trocas por votos, passeatas, operações tranca-ruas, panelaços, buzinança.
Então, então? Vamos criar uma rua nova na Ilha Capital, pelas regras formais de hoje, no modelo do Residencial Moinho Rio Vermelho da foto? Muita paciência nesta hora! Antes de comercializar os lotes o dono da área precisa aprovar o projeto na Prefeitura e registrar o empreendimento no cartório de imóveis da região, que vai outorgar-lhe uma matrícula principal. Nela vão sendo registrados – averbados – os desmebramentos da área total, a partir da venda de cada lote, que gera uma nova matrícula para cada um: é a individuação das propriedades.
O empreendedor só pode comercializar 55% do total da área do loteamento ou condomínio, observando todas as regras de zoneamento, como tamanho mínimo dos lotes e testada, entre muitos outros quesitos técnicos. Os outros 45% da terra o investidor tem que doar à “cidade que queremos”. Em uma parte desses 45% o próprio loteador tem a obrigação de implantar previamente as vias de circulação principal e secundárias (as ruas transversais, que ligam umas às outras). O restante ele deve preservar como espaço comunitário, cuja destinação os próprios moradores vão definir futuramente com os órgãos públicos: pode ser usado para área verde, praça de lazer, pode ser uma creche.
Entenderam aí, nesses 45%, por que é que os donos da terra “preferem” parcelar o solo à revelia da lei? Ele vende mais barato e nós compramos por menos. Mas – ATENÇÃO – cada um de nós tem dentro da sua propriedade particular um pedaço do tanto que está faltando lá fora para tudo aquilo que tanto reclamamos. Também é responsabilidade do loteador prover a completa infra-estrutura básica dos lotes, tudo segundo as especificações do Plano Diretor: ruas pavimentadas nas medidas corretas, água, energia. Por outro lado, o loteador não pode “inventar moda”, qualificar ou sofisticar seu empreendimento. Por exemplo: ele só pode implementar infra-estrutura compatível com os padrões das concessionárias Celesc e Casan, que é o que os órgãos públicos têm capacidade e responsabilidade de reposição ou ampliação.
Consultou a Susp?
Isso é assim porque, depois de concluídas as obras de estruturação do loteamento, ele vai ser entregue à administração municipal, que dará o “habite-se”, que significa que o empreendimento está legalmente constituído e pode ser habitado, isto é, os compradores dos lotes já podem edificar. A rua recebe denominação oficial e é incluída no mapa do Município, que passa, então, a ser o responsável legal por aquele logradouro. Pronto. Nasceu uma nova rua, perfeita e legalmente integrada ao Plano Diretor da cidade. Três anos se passaram desde que resolvemos criar a nossa rua: oito meses para licenciar o empreendimento; dez meses para as obras e dezoito meses para obter o habite-se da Prefeitura. Enquanto isso, as edificações irregulares nos loteamentos clandestinos em volta praticamente dobraram!
Observação importante: a “nossa” rua nova tem até as tais vias projetadas, as transversais de ligação com as suas paralelas, que devem existir mais ou menos na metade da extensão. Lamentavelmente, em pelo menos uma das paralelas ao Residencial Moinho o espaço foi vendido como lote. Por isso o município teria que desapropriar – isto é, indenizar – alguém que adquiriu de forma irregular uma área que, a rigor, pertence ao próprio município. Assim, se algum dia você ficar muito irritado com a falta de ruas transversais para facilitar-lhe a vida, é que provavelmente alguém está morando sobre elas.
Mas o regramento urbano não termina na parte do empreendedor. Para edificar, os compradores dos lotes também precisam seguir normas do Plano Diretor. Para serem aprovados pela administração municipal, os projetos devem obedecer aos padrões de zoneamento, o tipo de ocupação permitida ou proibida, os índices de edificação, de aproveitamento e a forma de ocupação do terreno. E, assim como compete ao loteador doar o leito da via para a cidade, aos donos dos lotes compete doar a área da calçada que devem estar demarcadas no loteamento antes mesmo da venda dos terrenos. Na Ilha há vários zoneamentos para as diversas regiões e distritos. Por isso tanta advertência: antes de comprar, consulte a Susp sobre a viabilidade do local. Afinal de contas, uma cidade não pode ser construída pelas conveniências de cada um dos seus moradores.
(Jornal Bairro do Rio Vermelho, 31/07/2007)