Ordem para “onda de assaltos” partiu de dentro da cadeia

Ordem para “onda de assaltos” partiu de dentro da cadeia

A recente onda de assaltos e furtos que assustou a sociedade na Grande Florianópolis não foi ao acaso. Foi orquestrada. A ordem partiu de dentro da penitenciária de São Pedro de Alcântara pelos líderes do Primeiro Grupo Catarinense (PGC), organização criminosa que nasceu nas entranhas do sistema carcerário de SC. O objetivo era responder ao crescente cerco da polícia ao tráfico de drogas na região. Em entrevista exclusiva ao Diário Catarinense, o secretário de Segurança Pública, André Mendes da Silveira, admite, pela primeira vez, a existência do grupo organizado no Estado. Ressalta que este tipo de ação é uma tentativa desesperada de capitalizar a organização, que a facção testaria sofrendo vários golpes pela ação policial. Aos 42 anos, casado também com uma delegada de Polícia, e à frente da secretaria desde abril, Mendes aposta numa única estratégia para vencer o crime organizado com base nos seus 24 anos de experiência: inteligência. A conversa foi gravada no gabinete do secretário, na presença de dois assessores do governo. Antes de falar sobre o PGC, Mendes conversou com o governador Leonel Pavan.

DESCASO
“Não quero transformar esta questão em uma questão política, até porque sou técnico. Até 2002, o que acontecia? Nós não cuidávamos dos presídios. Preso, se botava lá e pronto. Em 2003, o governo olhou para dentro dos presídios e se deu conta: nós temos quatro mil vagas e seis mil presos. Estava um caos. E as polícias trabalhando. Aí vem os exemplos de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Rio Grande do Sul, que possuem organizações criminosas, que surgiram a partir dos presídios. Seja para disputar a força para decidir quem comandava a ala do presídio, seja para se fortalecer financeiramente.”

EMBRIÃO
“Em 2003, surge em Santa Catarina a primeira tentativa dos criminosos de se organizarem e a ideia deles era criar um comando. Não começou como PGC (Primeiro Grupo Catarinense), mas com outros nomes. Surgiu em pequenas unidades prisionais de forma isolada como Itajaí, Balneário Camboriú e depois em Florianópolis. O grupo começa a ganhar forma, em 2003, em São Pedro de Alcântara. Começa com eles escrevendo como deveriam se comportar, ideias de como financiar a organização. No Brasil, o grande boom foi em 2006 com aquele evento em São Paulo, comandado pelo PCC.”

ORGANIZAÇÃO
“A grande crítica que se faz a quem estudou o episódio de 2006, em São Paulo, é que se negava a existência destas facções, destes grupos, destes comandos também naquele estado. E isso trazia problemas. Aqui, em Santa Catarina, por exemplo, sempre existiram insinuações sobre um suposto grupo organizado. Mas o assunto era tratado sempre como se não existisse. Se dizia que quando um cara do PCC ou do Comando Vermelho aparecesse por aqui, nós prendíamos e pronto. Agora, o que você acha que este sujeito vai fazer dentro do presídio? É lógico que vai tentar organizar uma espécie de ‘filial’ da sua facção.”

CORRUPÇÃO
“Esses caras começaram a se organizar dentro dos presídios cada vez melhor. O telefone celular é o maior exemplo. Hoje, tem grupo que faz conferência pelo celular entre os presídios. O cara de Chapecó, fala com o detento de Blumenau. É claro que é errado entrar estes aparelhos, mas é fato que os telefones estão lá dentro. Isso porque existe corrupção. Só que a corrupção não é apenas do policial. O médico que receita um medicamento específico para o paciente e ganha comissão de 10% do laboratório não está sendo corrupto? O advogado que se submete a entregar um celular para seu cliente no presídio, não está cometendo um ato ilícito? Existe uma corrupção de valores na sociedade de hoje. Existem partes do tecido social que estão podres.”

ESTRUTURA
“O PGC se organizou num conselho. Eles fizeram um estatuto e determinaram que as decisões devem sempre emanar de São Pedro de Alcântara. Hoje, eles já estão repensando isto, porque uma das ações que nós abortamos foi a transferência dos líderes para outros presídios. Só que até a lei de execuções penais dificulta, porque você tenta transferir o sujeito, mas o código penal garante a ele o direito de ficar perto da família. O grande feito seria concentrar todos os líderes num só presídio. Mas a lei não permite. E aí, quem é que está errado? O juiz, que cumpre a letra fria da lei? Claro que não. O problema é que estamos falando de uma organização criminosa, mas também sigilosa. É complicado fundamentar para o juiz que o sujeito pertence ao PGC.”

LIDERANÇA
“O Primeiro Grupo Catarinense é uma organização criminosa que tem alguns líderes identificados que exercem uma pressão sobre os outros presos, buscando trazê-los para dentro do seu grupo e utilizando, alguns, como mão de obra para práticas criminosas. E essa organização não é alheia à Lei. O que é que eles estão procurando fazer? A ordem, agora, é recrutar jovens e adolescentes para a prática de furtos e assaltos. Qual foi a primeira ideia deles: bom, vamos tentar dominar o tráfico de drogas, porque isso dá dinheiro e este dinheiro financia nossas ações. Sejam elas de corrupção, sejam elas estruturantes, como o pagamento de advogados, compra de arma, de mais droga. Aí, eles começaram a angariar cada vez mais gente. Muitos dos integrantes do PGC foram identificados como traficantes. Só que o PGC passou a cobrar parte da renda das bocas de fumo destes traficantes para não gerar uma guerra e para garantir a arrecadação. Um exemplo é o batizado do Neném da Ilha, também conhecido como Neném da Costeira, que presenteou a organização com dois fuzis, uma winchester e duas pistolas nove milímetros.”

VIOLÊNCIA
“Hoje nós temos quase 13 mil pessoas no sistema carcerário catarinense. Por quê? Porque o combate à violência virou prioridade dos governos. Nós passamos de 600 para 1,8 mil agentes prisionais. Se fez muito. Mas quanto maior a população carcerária, maior a chance de recrutar gente para a organização. Junte-se a isso o fato de legislações complexas como a que garante voto para os detentos.”

PRESÍDIOS
“É preciso lembrar que, desde 2003, se começou a investir pesado no sistema prisional catarinense. É difícil construir presídio. Não só porque é caro. É difícil porque os prefeitos não querem, porque as comunidades não querem. Mesmo diante de toda esta dificuldade, se investiu. O sistema prisional passou de 4 para oito mil vagas. Hoje nós estamos chegando a nove mil, quase 10 mil vagas já.”

TECNOLOGIA
“Nós investimos muito em tecnologia para combater esta organização. Nós temos, hoje, um banco de dados, com informações sobre o detento, seu histórico, colegas de cela. Isto nos permite monitorar quem são as pessoas que estão trabalhando nesta organização criminosa. A palavra chave para combatê-los é inteligência. Nós temos armazenados os tipos de tatuagem que cada detento possui, quando ele sai para liberdade de sete dias, fotogramos como ele saiu e como entrou. Outra forma é a tornozeleira. Se tu sabes que o cara vai sair por alguns dias e pode ser utilizado pelo PGC, tornozeleira nele.”

ASSALTOS
“Recentemente, foi divulgada a Operação Captura. Oficialmente, para a sociedade, nós dissemos apenas que estávamos atrás de foragidos no Estado. Mas, na verdade, nós tínhamos um foco. Num relatório, levantamos 500 nomes que podem ser integrantes do PGC e fomos à caça. Nós tínhamos 38 nomes que estavam no regime semiaberto e tinham escapado e foi sobre eles que dedicamos nossos esforços. Isto é trabalho de inteligência policial. Só que nós não estamos lidando com pessoas acéfalas. Não é porque o cara foi preso que ele é menos inteligente. Do outro lado, eles também sabem se mover. Aí, vem a Delegacia de Entorpecentes e começa a sufocar o tráfico na região. Imediatamente, vêm as ordens para eles praticarem assaltos.
Nós estamos hoje num jogo de gato e rato. Nós vamos, trabalhamos, identificamos e prendemos. Aí, eles se reorganizam e partem para novas ações. O crime sempre fez isto. Lembro quando prendi Vanderlei Gress, um dos maiores assaltantes de banco do Rio Grande do Sul, tentando arrombar um caixa eletrônico. Falei pra ele: “Tu, Vanderlei, assaltando caixa eletrônico?” E ele respondeu: “Doutor, pra assaltar banco preciso de um cano (arma) e o máximo que eu levo, hoje, é R$ 10 mil. Num caixa eletrônico, em dia de pagamento, dá pra levantar até R$ 70 mil e não preciso usar nem arma. Vou ser condenado por arrombar porta?”

Tamanho
“Essa organização criminosa sofreu um baque por causa da repressão à venda de entorpecentes. Interceptamos cartas em que eles dizem que as bocas de fumo não estavam funcionando e que eles precisavam se capitalizar. Daí, a alternativa foi migrar para o roubo. Isto existe. É uma organização criminosa que se chama PGC. É difícil mensurar a força deles. É certo que existem, mas não dominam todos os presídios de SC. Eles estão mais estruturados em São Pedro de Alcântara, Itajaí, na Grande Florianópolis e no Sul do Estado. Eles acusaram o golpe da repressão ao tráfico e mandaram seus membros assaltarem. Ele sentiram quando transferimos os líderes para outros presídios.”

MORTE
“É importante dizer que o PGC não é o Primeiro Comando da Capital, o PCC que assombrou São Paulo em 2006. Nós disciplinamos o funcionamento das unidades prisionais com a aplicação de um manual único de normas. Quando você tem um padrão de funcionamento, você consegue buscar responsabilidades. Nós não podemos ser hipócritas de acreditar que não existe risco de novas ações, mas este risco, hoje, é controlado. Não gosto de usar o termo de que a ordem para a onda de assaltos partiu dos presídios. Mas, na prática, partiu. É importante lembrar que estes movimentos não são inéditos. O crime organizado funciona como uma empresa e, como tal, precisa estar capitalizado. Só que, no mundo do crime, não existe cheque pré-datado nem cartão de crédito. Se nós fizermos uma apreensão de 60 quilos de maconha, o traficante vai precisar levantar o dinheiro de outra forma. Não pagar é sentença de morte no mundo do crime.”

INTELIGÊNCIA
“Por muito tempo não se acreditou na existência do crime organizado em Santa Catarina. Primeiro, as cartas da fundação do PGC datam de 2003, mas não foi naquele momento que descobrimos a existência da facção. O Estado descobriu mais tarde. Não é num passe de mágica que eles decidem criar o PGC na cadeia e a gente, pimba, já identifica. Nada disso. Foi preciso um trabalho de inteligência. Só que a Segurança Pública tem 500 problemas. E, infelizmente, a gente vive de ondas. Primeiro, eram os assaltos a banco.
Aí, lá íamos nós mobilizar a força policial contra o assalto a bancos. E eles lá no presídio, sem nada pra fazer o dia inteiro, só maquinando coisa ruim. Eu estou pensando em índice de assalto a banco, de homicídio, de tráfico de drogas. Quando eu melhoro uma estatística de homicídio, a sociedade cobra redução dos assaltos.
Quando baixa os assaltos, crescem os furtos. E, nós, da segurança pública, vivemos neste jogo. Só que nós estamos com algumas ações interessantes. Por exemplo: fizemos uma dispensa de licitação para a instalação de bloqueadores de celular nos presídios. É lógico que eles vão se movimentar. Só que só bloqueador não resolve, porque senão não haveria mais crime em Bangu 1 (Rio de Janeiro). É o velho jogo do gato e rato.”

EFETIVO
“Nos últimos anos, nunca se abriram tantos concursos para a contratação de agentes da Polícia Civil e para a Polícia Militar. Por isso, não vejo a necessidade de solicitar a ajuda da Força Nacional. É a mesma unidade que me tira, todos os meses, 50 policiais do Estado para atuarem em outras regiões. A grande crítica à Força Nacional é a seguinte: adianta tu pegares um policial lá da Bahia, por exemplo, com outra visão de costumes e sociedade para colocar numa operação em Santa Catarina? Não. Se adiantasse, tinham usado a Força no Panamericano no policiamento de rua. Não fizeram isto, porque os soldados não se adaptaram. Da forma como ela está estruturada, hoje, a Força de Segurança Nacional não acrescenta nada ao combate da criminalidade no país. A Força Nacional é discurso político e nada mais. E eles sabem que não funciona.”

GUERRA
“ Mas eu posso garantir, que somente com a nossa estrutura, nós estamos vencendo a briga contra o crime organizado em Santa Catarina. Tanto estamos ganhando, que eles (PGC) não conseguem mais se achar. Eles estavam no tráfico, nós apertamos nos tráfico. Eles migraram para os assaltos e furtos nas ruas e nós estamos em cima. Eles estão com dificuldades de se achar. E dá pra melhorar? Dá, trabalhando não é com efetivo, mas com inteligência. O crime se combate com a fluência da informação. Não adianta eu botar um policial para cuidar de uma rua se ele não sabe o motivo de ele estar lá. É preciso que ele tenha dados sobre o que acontece naquela região, que tipo de crime pode ocorrer. Sem informação, ele é um ponto perdido. Com informação, é um policial potencializado. A sociedade tem nos criticado muito. Agora, o que as polícias têm trabalhado nos últimos tempos é de deixar qualquer catarinense orgulhoso. Muitas operações, os policias aparecem voluntariamente.”

“BATISMO” DE NENÉM DA COSTEIRA
A Carta acima foi interceptada pela SSP saindo da Penitenciária de São Pedro de Alcântara. São quatro páginas, escritas em folhas de caderno.

O registro destaca o “batismo” de Neném da Costeira no PGC. Neném é um dos traficantes mais importantes do Estado. Ele também já esteve preso em São Pedro de Alcântara. Estão reproduzidos também os erros de português.

O trecho: “Neném, Costera está do nosso lado. Ele enprestou 2 fuzil, uma vinchester com bala 38, 2 arma 9 milimetro”.

(RAFAEL MARTINI, DC, 10/11/2010)