A Ilha tem limites

A Ilha tem limites

Da coluna de Dennis Radünz (DC, 28/05/2007).

Sinal verde sobre a faixa, céu nublado, as solidões se atravessam sobre a Rua da Trindade, agora a Arcipreste Paiva, no asfalto da ladeira em que, há século, houve o vendedor de água. Tinha o corpo recurvado dos que carregam peso bruto, embora, dentro, no barril da carrocinha, trouxesse só o peso líquido de sua mercadoria. Gritava. Talvez cantasse. E os moradores acorriam àquela sua carga viva e potável, trazida desde a mina artesiana às escondidas. O manancial que ele tomava para o próprio lucro e que depois – ao preço de quanto de sua vida? – o vendedor anunciava nas vielas da cidade cedo antiga. Era a Ilha, ainda, em fins do século 19, antes da baía soterrada, antes de todo esse turismo triste que agora nos consome e nos trafica em moeda verde.

Que eu me interrompesse na calçada, suspenso em uma outra vida, não era de se estranhar. Na esquina turbulenta da Tenente Silveira, eu procurava adivinhar, a poucos metros, o contorno daquele vendedor e a carrocinha de tração humana (como no traço de Domingos Fossari), embora o que ali descesse fosse apenas o tráfego amarelo dos microônibus, carros de toda espécie e classe e uns mil ou mais passantes que me ultrapassavam e me deixavam para dentro, num pensar pouco mais pesaroso e não o mesmo das pessoas que se apressam tão vagarosamente. Era a dúvida o que ali me estacionava e eu não adivinhava para qual futuro a Ilha ia.

Eu não tinha horas, mas sabia que o fuso horário era antigo, perdido que eu ia procurando com a memória a figura do vendedor de águas, enquanto a Catedral e sua sombra morna ameaçava a silhueta fria do Banco do Brasil. É. Depois que os construtores de vazio chegaram, aquilo que o aguadeiro atravessava mudou muito de lugar, a cidade se acresceu como um tumor benigno e a água enxoviada e choca agora a cerca e a circunda por todos os lados, sem limites.

Uma ilha que andasse para os lados, quem diria, seu aguadeiro? Quem pudesse naqueles antigamentes interromper as obras dos resorts e seus decks doendo sobre a água? Seus Cacupés invadidos? Seus costões? O futuro, agora, é um lugar inseguro. O progresso de uns é a derrubada de muitos. Era de se dizer que o aguadeiro da Rua da Trindade, desaparecido no passado, gritasse o seu alerta para os desavisados de nossa época, com a soma das suas especulações.

Todas as fases do sinal – rubro, amarelo, verde, repetidas vezes.

Eu tinha ali ficado como quem quisesse descobrir um Novo Mundo, tão distante da ilha derruída. Mas não, tudo era igual ao que tem sido e pouco falta para que os vendedores de créditos de Carbono circulem pelas vias restaurando as ladainhas dos remotos pregões de rua, alvos de zombaria e de deboche pelo seu imaterial, pelo desusado e aparentemente inútil da sua oferta, que são os indultos para um paraíso terreal: uma Lagoinha do Leste livre de escadas rolantes, de condomínios fechados e tapetes de betume.

No futuro próximo, talvez desçam por essa mesma Arcipreste Paiva novas hordas de comerciantes com a rara especiaria de suas cápsulas de água e areia comprimida, dunas virtuais e água falseada, com outras ocupações de encosta e isenções fiscais. São os construtores de aterros que, por debaixo de uma ponte pendida entre dois vazios, avançam a sua terra firme até que as bordas da Ilha toquem o Continente, sem nenhum espaço para o tráfego de cocorocas em meio aos cardumes dos automóveis importados – e quem vê aquele cais antigo, na pintura do Masc, jura que Martinho de Haro mente.

Por causa de todo o verde extinto, o sinal para pedestres se avermelha para sempre – não consigo atravessar a rua, porque não mais me alcanço, eu, o último dos aguadeiros. É que o progresso ergueu, na Ilha, uma barreira às espécies.