22 mar Farra do boi: tradição e crime
Há duas certezas sobre a farra do boi: a tradição e o crime. Por um lado, o registro mais antigo aponta para uma farra ocorrida em Tijucas, em 1874, conforme os estudos do antropólogo Eugênio Lacerda. Mas os historiadores estimam que há 260 anos, homens, mulheres e crianças correm atrás de bois bravos pelos campos e praias catarinenses. Por outro, a ação da Polícia Militar, que tenta impedir que a prática aconteça, geralmente na Sexta-feira Santa, cumprindo com a determinação do Supremo Tribunal Federal que proibiu a farra, sustentando que ela fere a Constituição Federal, no artigo que garante a proteção dos animais. A duas semanas da Semana Santa, a polêmica está mais uma vez à mesa.
Aos 74 anos, o lavrador Agenor Pereira não consegue entender a proibição da farra do boi. É difícil entrar em sua cabeça que uma brincadeira que faz parte de sua vida desde que ele nasceu possa ser considerada crime. O mesmo sentimento tem o pescador Idavalto Fernandes, 72 anos. Moradores de Governador Celso Ramos, eles lembram de quando os pais os levavam para correr atrás do boi.
– Eu tinha oito anos. Ele sempre dizia para gente subir na árvore quando o boi era solto, porque ele estava bravo. Depois a gente podia brincar – diz Agenor.
Idavalto tem na memória a lembrança da primeira farra com 13 ou 14 anos.
– Ninguém judiava do boi. A gente só corria atrás dele, ficava atiçando. Quando ele cansava, era amarrado para descansar. Outro boi poderia ser colocado para brincar – conta o pescador.
Para os dois, a diferença para a farra de hoje está no espaço. Antes o animal era solto no mangueirão ou no pasto. Hoje, com o crescimento da cidade, ele fica na praça, perto das casas.
– Também vem gente de fora e são eles que judiam do boi. A gente não. A brincadeira era entre a família, com pouca gente – lembra Idavalto.
Ele conta que a farra tinha aspectos de celebração entre amigos e familiares, quando os pescadores, depois de mais de um mês no mar, voltavam para casa. Um boi era escolhido para virar churrasco no domingo de Páscoa. Então, na Sexta-feira Santa, quando não se come carne, o bicho era solto para a brincadeira. Segundo Agenor, os homens escolhiam pelo mais bravo e juntavam dinheiro para comprá-lo.
– Era a nossa alegria, porque não temos muito o que fazer por aqui. Assim como meu pai me ensinou. Eu ensinei meus filhos e netos. E assim vai. É uma tradição nossa – argumenta Agenor.
Diretor do Núcleo de Estudos Açorianos da UFSC, o historiador Joi Cletison defende o ordenamento da farra por entender que ela é uma tradição cultural catarinense. Para ele, antigamente não havia agressões ao bicho, mas a farra foi perdendo o caráter não-violento, muito em função da repressão.
– É claro que hoje, sem regulamentação, o que acontece é uma guerra entre polícia e farristas. É óbvio que é agressivo ao bicho fazê-lo correr às vezes 12 quilômetros com um veículo atrás dele. Nós não defendemos isso. Defendemos o ordenamento para proteger o animal e manter o signo cultural – afirma.
Na última quinta-feira, em uma reunião no Comando Geral da Polícia Militar (PM), que durou cerca de duas horas, a operação de combate ao crime da farra do boi foi intensamente discutida entre oficiais.
Agentes do serviço de inteligência levaram informações sigilosas sobre transporte de bois entre uma fazenda de Tijucas e Governador Celso Ramos. O monitoramento da região é feito desde o início do ano. Pelo menos três bois já estariam em Governador Celso Ramos para a farra.
Há duas semanas, a polícia opera 43 barreiras especificamente de combate à prática. Elas são móveis, mas ficam prioritariamente entre Navegantes e Sul de Florianópolis. Algumas barreiras são marinhas, com botes e um barco da Polícia Ambiental. Outras são montadas em cidades de onde vem o boi, como Antônio Carlos, Águas Mornas e até Brusque.
– Os farristas sabem que são monitorados por nós. Por isso, buscam rotas alternativas. Em Celso Ramos, pegam estradas de terra por cima do morro. Por isso, estamos mudando nosso posicionamento – explica o tenente-coronel, João de Amorim, subchefe da comunicação social da PM.
Apesar do trabalho policial, este ano já foram registrados 69 ocorrências de farra do boi, mesmo antes da Semana Santa, quando o índice aumenta ainda mais. Em um desses registros, um animal foi encontrado morto. Além das barreiras, a polícia fará monitoramentos de helicóptero e com cinco câmeras móveis de vigilância.
O ambientalista Halem Guerra Nery, presidente do Instituto Ambiental Ecosul, é contra a farra:
– Existe um componente de tradicionalismo, porque a farra é praticada há muito tempo. Mas eu não posso ver como cultural um evento que sacrifica animais. Além disso, existe a pressão psicológica que o bicho sofre ao se ver acuado por uma multidão. Ele se joga em arame farpado, fere-se.
Nery acredita que não é há como ordenar a prática, como defendem os historiadores, pois é impossível controlar uma multidão correndo atrás de um animal.
A farra do boi passou a ser um crime em 1997, quando o Supremo Tribunal Federal considerou a prática uma crueldade contra os animais, proibindo a realização mesmo em mangueirões. A pressão por criminalizar a farra começou nos anos 80, quando passaram a se registrar maus-tratos contra os animais. Em um ato marcante, Fernando Gabeira discursou para uma multidão contra a prática, em Governador Celso Ramos, no dia 2 de abril de 1988.
(Por Cristina Vieira, DC, 21/03/2010)
NA INTERNET
A favor
Vamos achar uma solução para o governo ganhar dinheiro. Assim, a farra será uma festa como um rodeio.
Florianópolis
Sugiro que os detratores da brincadeira leiam os anais do Congresso de Antropologia realizado em Florianópolis e reflitam sobre sua total ignorância.
Silveira Martins (RS)
Sou a favor da cultura. Cada pessoa tem um pensamento e uma cultura. Respeitem, ou outros não respeitarão a sua.
Itajaí
Já fui várias vezes e sou a favor. Não é o que vocês pensam. Isso é a única tradição que aquele município tem.
Rio Grande do Sul
A farra do boi é uma tradição, quem não aprova deve voltar para a sua cidade, pois todos que criticam não são naturais.
Florianópolis
Trata-se de uma tradição popular, adquirida dos povos que colonizaram a região e que, por isso, deve ser respeitada. Não cabe ao Estado ou qualquer outra entidade, intervir.
ALESSANDRO BECKER
Florianópolis
Contra
Assim como as touradas essa é uma manifestação que maltrata os animais e deve ser banida. Isto não é cultura!
É inadmissível que em um estado dos mais bonitos e de pessoas inteligentes, ainda ocorra tamanha barbárie.
Totalmente contra. Deveria colocar quem pratica no lugar dos bois, pra sentir na pele o quanto dói.
Isso deve, sim, ser proibido, e quem for pego, deve ser preso, pois isso é ridículo, além de ser um crime contra os animais.
O fato de ser tradição e/ou supostamente cultura não significa que seja algo que deva ser preservado, mantido, cultuado e protegido.
Isto não passa de uma covardia de gente da pior espécie. Estas pessoas agem como psicopatas, que não tem sentimentos.
Baseado na legislação ambiental
O ACÓRDÃO 153.531-8 DE 1997 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Considera a farra do boi uma crueldade com os animais, ofensiva ao inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal e proíbe sua realização, ainda que sem violência e dentro dos mangueirões, sob pena de responsabilização de seus agentes.
ARTIGO 225 DO CAPÍTULO VI DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Parágrafo 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: … proteger a fauna e a flora vedadas, na forma da lei, as práticas que possam colocar em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou que acabem por submeter os animais à crueldade.
LEI DOS CRIMES AMBIENTAIS (LEI 9.605 DE 12 DE FEVEREIRO DE 1998)
É crime contra a fauna praticar atos de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos. Pena: detenção de três meses a um ano e multa. A pena é aumentada de 1/6 a 1/3 se ocorrer a morte do animal.
1997 – A farra é proibida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), baseado no artigo 225 da Constituição Federal.
2002 – Governador Esperidião Amin (PP) veta projeto de lei da Assembleia Legislativa que legalizava a farra.
2006 – São registradas 467 ocorrências no Estado. Um grupo de turistas de Sorocaba (SP) é surpreendido por um boi em Itapema. Uma mulher é ferida. Em março, um adolescente morre numa farra em Itapema.
2007 – O Estado registra 294 casos da farra. Em abril, em Gov. Celso Ramos, uma lei é sancionada estabelecendo regras para a chamada brincadeira do boi. Em outubro, ela é suspensa em liminar pelo TJ.
2008 – São registradas 177 ocorrências, com 28 pessoas detidas e 14 bois apreendidos.
2009 – Em abril, a polícia apreende 40 bois em Celso Ramos. No dia seguinte, manifestantes de ONGs de proteção aos animais fazem protesto no Centro da Capital
(DC, 21/03/2010)
EDITORIAIS: Tecnologia contra a barbárie (DC, 21/03/2010)
Todos os anos, nesta época, os catarinenses sentem que os olhos do Brasil e do mundo convergem para o Estado. E por um motivo que em nada nos orgulha: a execrável farra do boi, uma prática que, além de ilegal, e portanto proibida, atenta contra a civilidade. Mesmo que a tortura de animais seja praticada por uma minoria e restrita a algumas regiões do Litoral, sua violência e ignomínia são tais que, a cada cena de maus-tratos que ganha o noticiário, todos os que vivem neste Estado são, de algum modo, prejudicados.
Durante décadas, complacentemente, as autoridades fizeram vistas grossas para uma selvageria travestida de manifestação cultural, como se houvesse razão para assim considerar a prolongada agonia e a morte horrenda de um pobre animal. Por isso, é elogiável a intenção da Polícia Militar de utilizar câmeras eletrônicas para identificar farristas. Pois só com a punição exemplar dos infratores, assim como dos que, por interesses egoístas, patrocinam semelhante atrocidade, é que poderemos dar um basta a este atentado à razão.
Não deixa de ser irônico que se esteja lançando mão da tecnologia para coibir algo que nos remete ao mundo medieval. Primeiro, porque tal recurso poderia muito bem já estar sendo utilizado há bom tempo, e não somente agora. Depois, porque, para acabar de vez com a farra, a tecnologia em si não é imprescindível. Investimentos contínuos em educação são muito mais eficientes, posto que seus benefícios espraiam-se sobre praticamente todos os atos de um indivíduo, inclusive sobre os índices de criminalidade.