28 fev Observatório da Gastronomia Entrevista: Pedro Soares Medeiros
Nascido em Santo Amaro da Imperatriz, Santa Catarina, na Grande Florianópolis, Pedro Soares Medeiros, começou a se aventurar na cozinha quando estudava para ingressar em engenharia ambiental. À época, cozinhava para o pai, substituindo os fasts e os deliveries da rotina de ambos. Viu despertar o conhecimento adquirido observando a avó e a mãe nas atividades do comer – selecionar, picar, ralar, descascar, cozer. Nas refeições compartilhadas, o pai percebeu potencial e dedicação e sugeriu ao filho que deixasse a engenharia e fosse para a gastronomia. E assim foi – para nosso deleite. Formou-se em Gastronomia, na Faculdade Senac Águas de São Pedro, São Paulo, em 2009, e seguiu para Florianópolis atrás de um emprego de verão. De freela chegou a sous chef do restaurante, aproveitando as reservas para adquirir livros e materiais para uso pessoal. Três anos após sua graduação, seguiu para um estágio no Noma, na Dinamarca. E, de lá, para a Espanha, México, Suécia, Noruega, sempre intercalando com períodos no Brasil. No transcorrer dos anos – e das cozinhas – passou do discurso do respeito à biodiversidade, seus insumos e sazonalidade, à prática. Vê na valorização e popularização desses insumos o fator impulsionador da rede produtiva da gastronomia, respeitando a sustentabilidade financeira do/a produtor/a e/ou pescador/a. Para ele não há problema em servir o trivial nos restaurantes e comidas de rua, desde que bem feito. E, reforça, é preciso valorização do profissional, capacitação e boa remuneração. Em breve, comandará a cozinha de um renomado evento gastronômico. Conversou com o Observatório da Gastronomia no dia 28 de agosto de 2019, para compartilhar sua trajetória e suas experiências relacionadas ao Programa Florianópolis Cidade Criativa Unesco da Gastronomia.
[Nathália Bernardinetti – NB] Pedro, a gente vem de uma aula com os alunos do curso de cozinheiro da Faculdade Senac Florianópolis onde você falou um pouco da sua trajetória, mas poderia compartilhar com o Observatório da Gastronomia como foi sua experiência nos estágios e intercâmbios?
[Pedro Soares – PS] O primeiro restaurante que eu fui foi o Noma, fui pra lá em 2012, cheguei lá no final de fevereiro e fiquei até começo de abril. Era minha primeira vez fora do Brasil, mas era uma cozinha que eu tinha muito interesse. Surgiu por causa disso, eu trabalhava em um restaurante – o que eu comecei a trabalhar – eu entrei de auxiliar e quando saí era sous chef, fiquei dois anos e pouco. Eu lembro que comprei o livro do René [Redzepi], tinha ouvido falar de um evento que o Alex Atala tinha feito com ele, algo assim, e aí eu vi que, logo depois, ele ganhou no 50th Best como melhor restaurante [The World’s 50 Best Restaurants – 2010 – Melhor Restaurante do Mundo] e aí fui ver quem era esse cara, o que ele estava fazendo de tão inovador. Foi muito bom saber da trajetória dele, que ele é um cara que sai do eixo Espanha-Itália-França, cozinha clássica, “prato tem que ser servido na louça, assim, desse jeito”, ele quebra um pouco disso. Ele usa muito prato diferente, muito prato que desafia o comensal, que a pessoa olha e fala, “como vou comer isso daqui?”, isso é legal também, você dar esse desafio. O menu ao mesmo tempo simples mas muito criativo. A Dinamarca é um país pequeno, tem um inverno muito rigoroso, que é bem complicado na relação produto-produtor. Claro, com a globalização você consegue comprar qualquer coisa em qualquer lugar do mundo, mas isso tem que ser viável, você não pode exportar tudo, importar tudo. Com uma cenoura ele conseguia um baita prato. A salsinha ele não via como aqui no Brasil, ele começava a fazer gelatina, espuma ou usar o talo de salsinha em decoração em alguma coisa, a folha ele desidratava e fazia outra coisa. Você explorar o produto, foi muito legal. Eu pensei, “um dia vou conhecer e vou atrás de trabalhar com ele”. Trabalhava no Café Riso, o meu chef saiu e a gente ficou meio órfão, por mais que às vezes o chef não participe de todas as operações, é alguém que tu pode contar, é alguém que tu pode ligar, é alguém que confia em ti, é alguém que valoriza, e quando você perde esse pilar, é bem difícil. Eu pensei, “talvez seja agora”, eu já estava esperando um motivo pra tentar esse novo desafio. Consultei ele, quando ele saiu, ele apoiou. Era, provavelmente, o destino que muito cozinheiro gostaria de ir. Peguei, escrevi uma carta em português, ficou muito grande [risos], falei, “não, europeu é mais direto, a gente gosta de colocar mais amor, explicar muita coisa”, provavelmente já falei bastante também até chegar aqui [risos], mas escrevi, diminuí, diminuí, passei para o inglês – minha irmã me ajudou a traduzir, na verdade ela corrigiu como se fosse uma prova o meu inglês, que eu achava que estava muito bom [risos], e mandei. Procurei no site, não tinha um e-mail para estágio na época. Mandei para o e-mail de reserva do restaurante. No mesmo dia ele me respondeu – quem respondeu foi o Matt Orlando, que foi sous chef do René por um bom tempo, hoje ele é chef do Amass, em Copenhagen também, ele foi muito gente boa. Eu imaginei que talvez tivesse que justificar alguma coisa, que ele me cortasse ali na hora, mas não, “pode ser em fevereiro do ano que vem, tá bom pra ti? Você fica um mês e pouco”. Hoje, nos estágios, o pessoal fica uns três meses, o mínimo que pedem em um restaurante [com estrela] Michelin, 50th Best, mas eu não tinha condição, ele entendeu isso e eu comecei a mudar minha vida pra fazer isso. A rescisão do restaurante me ajudou bastante, porque o custo é todo da pessoa, você tem que estar lá naquela data e vai viver a rotina do restaurante, no final tu sai, volta e começa a usar o que aprendeu na sua cozinha, na sua vida. Eles te dão a disponibilidade de estar lá e de fazer parte da equipe. Eu consegui. Minha família infelizmente não conseguiu me ajudar muito na época, minha irmã foi a pessoa que mais me ajudou, as vezes eu estava desmotivado, eu pensava “será que devo fazer esse investimento agora?”, a gente não estava tão bem financeiramente pra se dar ao luxo de uma viagem internacional, mas sabia que ia ser bom, que ia colher os frutos disso mais pra frente. Eu fui, como disse, minha primeira viagem pra fora do Brasil, cheguei, consegui um lugar pra ficar, fui recebido em português por um cara, achei estranho, ele falou, “e aí, tudo bom?”, aí fui descobrir que o coordenador de estágio era o Leonardo, que é português de Portugal, claro [risos], e ele veio falando o português de Portugal, e vi que ele já morava muito tempo ali, teve esse primeiro contato e foi muito bom, foi surreal, eu já estava assim [assustado], meu inglês não era tão bom, eu já estava estudando pra melhorar ele e aí ser recebido e o primeiro briefing de tudo [em português], “aquela seção é tal, ali se faz tal coisa, esse cara não sei o que, aqui se faz isso, todo dia você tem que fazer essa rotina e tal”. Então isso foi muito bom pra mim, porque já me deu um ânimo, que eu achei que seria muito difícil, porque é uma rotina muito desgastante, a gente chegava às 8 da manhã e saía meia noite todos os dias, era muito puxado, cinco dias da semana, domingo e segunda fechava. No final do dia você trabalhando nem sentia o cansaço, aprendia tanto e sentia tão bem de estar ali. Foi muito bom esse contato, ver de perto, imaginei que poderia ter alguma coisa de quebra de expectativa, excedeu tudo o que eu imaginei, tem profissionais excelentes lá, de todas as partes do mundo, todos têm paciência e todos valorizam muito que a gente está ali. Porque o menu do Noma não funciona sem estagiário. Quando eu estava lá eram 30, 40, alterava sempre, toda semana saiam e entravam novos. Sem essas pessoas não tem como fazer um menu, não existe o restaurante. E eles sabem disso e eles te mostram e te valorizam por isso todos os dias. Isso foi muito bom, conhecer o René também, todos os dias ele cumprimentava os estagiários olhando no rosto e agradecendo, isso foi muito bom, esse contato com ele. No final o estagiário acaba ficando chef de uma seção. Eu estava na cozinha da manhã, A.M. Kitchen, a gente chegava ainda um pouco mais cedo, 6 horas da manhã a gente já tinha que estar lá. Eu era encarregado pelo menu de sucos e ajudava também, claro, no mise en place de tudo. Meu chefe era o Halaigh [Whelan-Mc-Manus] que é um irlandês, ele ficou lá por um bom tempo.
[NB] E de lá você voltou pra cá ou foi direto pro elBulliLab?
[PS] Voltei para o Brasil. E o chef que tinha saído do Café Riso, o Vitor Gomes, estava com um projeto novo, queria fazer um bistrô na própria casa. Nós seríamos em três para fazer toda a operação, eu, o Denis Jaeger e o Daniel Lauria, além do Vitor. Era uma rotina bem legal, acabei aceitando o desafio. Uma das coisas que mais me atraiu foi que na rotina eu teria que fazer o garde manger, que era uma área que eu geralmente dominava, fazia bastante, e aí ele pediu que eu fizesse a confeitaria também. Era uma área que eu gostava, tinha bastante interesse, mas eu não dominava tanto. Tinha tido uma bela base na faculdade, que o Senac me deu, mas não segui praticando, só em casa, bem informalmente, “profissional, em um restaurante?, vamos ver se eu vou dar conta”. Começamos isso e ele falou, “a partir do próximo mês nós vamos mudar o menu toda semana”. E aí, eu até comentei na aula, você ser criativo é uma coisa, você estar ali e tal, vem o lapso de criatividade e você coloca no papel ou tu faz, agora, você ter que ser criativo sob pressão é muito mais difícil. Então você aprende a trabalhar com… você acaba fazendo assimilações na cabeça, você cria algumas trajetórias, que te ajudam, pra ter sempre alguma coisa pra alimentar isso, tem gente dependendo de ti. Isso deve ser muito, muito mais difícil quando você é um restaurante três estrelas ou que você tem uma visibilidade muito maior, porque imagina, o elBulli antes de fechar tinha gente que comprava a passagem só pra ir pra lá, alugava um hotel só pra ter a experiência de comer no restaurante e ir embora. Então, tem muita gente com expectativa de comer a sua comida e você também não quer decepcionar, não é nem dar o seu melhor, você quer dar o seu 101%, você quer que a pessoa saia – não pode só estar bom – tem que ter o elemento “uau”. Você sai com aquilo de lembrança, seja por um jeito de empratar ou esses desafios que o cliente tem ali na hora de comer, ele é quebrado ali de ter que sair do garfo e faca e ter que comer com a mão. Então, eu trabalhei lá algum tempo e junto a isso eu comecei a trabalhar no Il Campanário, em Jurerê [Internacional]. Eu trabalhava no Il Campanário de manhã, acabava o horário, acabava o serviço, eu saía correndo, pegava o ônibus e ia pro restaurante e ficava até de noite. Eu fiz essa rotina por uns dois anos. Era bem puxado, porque o hotel, por ser Jurerê, tem sazonalidade, lógico que no verão sempre bomba mais, é um movimento muito maior, mas quando chega o inverno você pega outro tipo de cliente, você pega grupo de banco, que vem 500 pessoas, você tem que criar algumas atividades para sustentar o hotel e ele não ser só rentável durante os três meses do verão. Então, isso foi bem puxado, mas isso também era bom, porque eu tinha as duas realidades, tinha o empratado, menu de seis tempos à noite – que eu conseguia exercer minha criatividade – e de manhã eu tinha aquela cozinha de hotel, cozinhar para quinhentas pessoas, que você tem que fazer de uma panelada gigante, tem que estar saboroso, você tem que fazer um buffet excelente porque não é barato também para quem está pagando, mas você tem que fazer comida pra muita gente e estar saboroso, estar tudo no ponto, acertar peixe, acertar ponto de massa, risoto, é muito mais complicado. E lidar com pessoas também. Eu era sub chef do hotel e era sub chef do restaurante, isso foi muito bom também pra pegar essa lida, você lidar com pessoas é outro universo. Você tem que exigir da pessoa, é muito diálogo, é muita compreensão, eu fiquei no total 3 anos no restaurante do Vitor Gomes e dois anos no hotel. E aí saí, e de novo com a rescisão, fui atrás da Fundação do Ferran Adrià. E como surgiu? Eu já tinha conhecimento dele lá atrás na faculdade e, depois, descobri que o René, que foi o cara que eu fiz estágio, que ele foi estagiário do Ferran, sabia que o restaurante não existia mais. Eu seguia as redes, o que tinha dele e aí eu vi que mudou o layout do site e tinha uma caixa para fazer uma inscrição, que ia ter um projeto e você se inscrevia e tinha algumas etapas para ver quem seria o selecionado. Eu vi que pouca gente discutia isso, entre meus amigos ninguém comentava muito, acho que não foi uma coisa muito divulgada, era quem tinha interesse que olhava ali de vez em quando. Coloquei meus dados, me mandaram e-mail pedindo muita coisa, além de currículo você tinha que mandar um vídeo, um questionário respondido, tinha bastante coisa pra fazer e mandar pra eles. Tinha que ser em espanhol ou inglês. Meu espanhol também não era bom. Nessa época meu inglês já estava melhor mas meu espanhol não [risos]. Acho que fiz em espanhol mesmo e logo eles responderam dando o ok, que eu poderia ir e tinha que ficar três meses lá, morando em Barcelona. O restaurante era em Roses, mas o laboratório, onde é a fundação é em Barcelona, perto da Plaza España. Começou outra jornada, ir atrás de lugar pra ficar, voo, achar o mais barato possível, porque três meses, sem ter renda nenhuma ia ser bem puxado. Com a rescisão tinha um suporte para manter ali, fui atrás, consegui achar um lugar para ficar, cheguei na Espanha, não tinha… E é muito complicado, o espanhol do catalão é muito diferente, o catalão é muito difícil, a gente está acostumado com o castelhano, o castelhano do Uruguay, do argentino que vem pra cá, alguma coisa que a gente ouve de música, de cinema, mas é muito básico, você pega ali o dia a dia e era bem complicado. Foi um erro meu, estudei mas não me dediquei tanto quanto eu fui pro Noma e precisava falar em inglês, porque eu achei que não ia ser tão difícil. Erro meu. Eu chegava do estágio, ficava estudando. Cheguei lá, era uma rotina totalmente diferente, o elBulliLab, que faz parte da Fundação do Ferran, hoje eles vão começar um museu, que é onde era o restaurante, eles vão ter várias outras atividades, mas ali era um trabalho de investigação e criação de conteúdo. Ele tem vários projetos com várias empresas e ele vai dividindo a galera que está lá, que se dispôs a estar lá, então você não tem só cozinheiro, 10% só é cozinheiro, o resto é desenhador gráfico, biólogo, botânico, geólogo, você vê um pouco de tudo, mas todos têm interesse na gastronomia e sabem desse valor, de como é importante estar ali. O Ferran sempre foi muito inovador na cozinha. Quando ele saiu, fechou o restaurante, estava próximo a busca pela Fundação, ele tinha esses projetos, mas muitos desses projetos eram de coisas que não existem, né. Você fazer um museu de um restaurante, você fazer um estudo que ele fez com a Lavazza sobre o café, que foi muito importante, você fazer o catálogo da história do restaurante, eram coisas que não existiam, não tinha fonte, não tinha referência, você era isso, você estava criando uma coisa diferente, isso foi muito surreal.
[NB] Isso foi em que época?
[PS] Isso foi em 2015, outubro. Fiquei outubro, novembro e dezembro lá em Barcelona. Aí eu também dei mais uma sorte, que quando eu comecei eu conheci a Flávia [Fonseca Semenow], era uma brasileira que também estava lá e ela me ajudou bastante porque ela tinha morado muito tempo em Madri, então ela falava o espanhol perfeitamente, e brasileiro adora ajudar outro brasileiro pior [risos], ela me ajudou bastante nessa época, muita dúvida eu tirava com ela, as vezes até na hora do trabalho, termos em espanhol que eu não conhecia, foi muito legal. A parte de cozinha mesmo a gente teve pouca experiência, alguns eventos que ele fazia e a gente acabava ajudando, mas foram atividades muito legais, essa parte de criação, que você tem que criar mapa conceitual, seja do reino dos micro-organismos ou fazer o mapa conceitual com todas as partes comestíveis de um boi ou algo assim, era muito legal quando tinha o trabalho finalizado, porque o teu chefe, o teu gestor ali do grupo, ele também estava no mesmo barco, a gente estava criando alguma coisa que a gente não sabia, então você desenvolvia o seu trabalho, apresentava e o cara tinha uma noção vaga e falava, “putz, é exatamente isso, o que eu gostaria de ver é isso aqui”. Isso era muito legal. Esse projeto começou antes disso, da gente estar lá. A gente foi chamado para desenvolver, alguns grupos vieram depois, depois não chamaram mais ninguém, finalizaram com quem estava lá e esse conteúdo gigante eles vão fazer um livro ou virar um aplicativo, porque o que ele queria fazer, ver a visão do mundo perante a gastronomia, pode-se dizer. Então, se você quer estudar alguma área, que é relacionada com gastronomia, na verdade tudo é gastronomia, desde química, física, história, tudo tem a ver com a parte de alimentação e restauração, só que as vezes você quer saber mais, por exemplo, sobre flor comestível você pega um livro de botânica, é muita informação que tu como cozinheiro não precisa. Você ter um conteúdo mais direcionado seria muito mais legal, mas não existe. A partir daí a gente fez algumas coisas. Ele dividiu primeiramente o mundo em materiais inorgânicos e os seres vivos. O que é inorgânico que a gente usa na gastronomia? É o ouro, é a prata, o sal, que não tem vida e a gente usa pra se alimentar. E dos seres vivos, os vários reinos que a gente conhece, animais, vegetais, os fungos e os micro-organismos. A gente ia desenvolvendo em cima disso. Foi muito legal ver isso acontecendo, do dia que a gente chegou até o dia que a gente saiu, foi uma rotina muito legal, e viver Barcelona também, é uma cidade muito bonita, é uma cidade que valoriza e vive a gastronomia. Tem muitos restaurantes com estrela Michelin, restaurantes 50th Best, muitas referências, muitos pupilos do Ferran que saíram e abriram restaurantes. A gente estar lá e conviver, e eles indo na Fundação e fazendo contato, essa parte foi muito importante. Comecei a ver que a gastronomia – eu já sabia mas nunca tinha vivido isso – que a gastronomia não é só cozinhar, é muito estudo. Você aprender isso, você ver isso, aprender o jeito de criar e desenvolver isso, é muito legal.
[NB] A gente falou aqui de Espanha, de Dinamarca, você voltou agora da Suécia. Você ia apresentar um pouco da culinária brasileira, como foi sua experiência por lá?
[PS] A Suécia surgiu em… quando voltei da Espanha, comecei a me dedicar a eventos, que era uma coisa que acabei conciliando essa parte criativa, buscando através de sazonalidade e investigação, até o que é tendência você tem que saber. É muito bom trabalhar com evento porque você está se reciclando e ao mesmo tempo você tem que atender o que seu cliente quer. Fazendo evento comecei a ter um pouco mais de tempo livre. Isso foi muito bom tanto pra parte de estudo, quanto a parte de contato. Foi um desses contatos, o chef Fábio Coelho, ele fazia parte da Confraria [Cidade Criativa Unesco da Gastronomia], e falou, “olha, vai ter uma reunião da Confraria, Florianópolis faz parte da Rede Unesco de Cidades Criativas, então eu acho que você pode ir, pra ver como é”, e ele falou que se debatia muito tema de legislação, muita coisa que foge do que a gente pode aportar, mas por estar ali era legal porque davam ouvido pra todo mundo. Quem está ali é um produtor, é um chef, é interessante ter esse contato. Eu fui, acho que a primeira reunião que eu fui foi no Narbal [Corrêa]. Achei muito legal a ideia de se debater a cidade como turismo, como gastronomia, e ali eu comecei a conhecer alguns fornecedores de frutos do mar, de ostras, então comecei a ver que existia esse diálogo, que era muito importante, isso foi muito bom. Essa Rede [Unesco de Cidades Criativas] é muito maior, depois fui vendo que tem país que tem mais de uma cidade, elas todas se comunicam, elas todas fazem reuniões anuais, para se divulgar o que é bom, para falar do que é ruim, pegar os exemplos bons ou só divulgar uma experiência que foi produtiva, que você consegue integrar duas cidades ou até mais. Ia ter uma reunião – geralmente quem vai é o ponto focal ou alguém do Grupo Gestor [da chancela da Unesco], que é a parte mais burocrática, que tem contato mais do prefeito, os articuladores – não é sempre que nessas reuniões precisa de chef, algumas reuniões são juntas com algum festival, Macau [China], Bergen [Noruega] – eu tive o prazer de ir ano passado nesse festival. Alguns festivais eles convidam cidades ou convidam o gestor e um chef, e esse chef as vezes é só dar uma palestra ou tem que apresentar um prato típico, as vezes tem que fazer um tasting, um menu com uma provinha para 100 pessoas, 30 pessoas, dependendo da capacidade do evento. Tem vários tipos, as vezes tem, como foi em Belém [Pará], que foi um ‘campeonatinho’, era um chef batalhando contra o outro, era puramente para ter dois chefs trabalhando ao mesmo tempo e apresentar dois pratos, não teve vencedor ou perdedor, era legal ter essa dinâmica diferente também. Cada cidade escolhe uma diferente. Ia ter uma reunião em Dénia, no sul da Espanha, e precisava um chef representante de Florianópolis para fazer um prato e apresentar uma degustação na sequência, de alguma coisa relacionada com a identidade gastronômica da cidade. Fui selecionado e fui pra Dénia representando Florianópolis. Foi uma experiência incrível poder estar ali. Levei pra eles o que era o peixe com pirão, farofa de banana, só que de um jeito diferente, mostrei o clássico, mostrei como que, provavelmente, não tenha tido uma pessoa que o criou, mais ou menos na linha do tempo tem a época que esse prato foi criado e tentei mostrar isso pra eles. No tasting eu servi pra mais ou menos umas cinquenta pessoas, servi pastel de berbigão e suco de butiá, foi bem legal [risos]. Esse contato é muito importante, essas reuniões, quando a gente pode representar, tinha muita gente ali que era o primeiro contato com comida brasileira, provavelmente nunca vai vir para o Brasil, então você tem que fazer esse contato ser interessante e que a pessoa saia dali e busque ou se souber de um restaurante brasileiro, que vá atrás, pra ajudar a popularizar. O pessoal gosta muito do Brasil, isso é unânime, só que muitos não sabem direito porquê gostam, “ah, eu gosto do Brasil porque tem algo que me agrada”, muitos gostam, claro, pelo futebol, pouquíssimos que conheci fora vieram pra cá, de 500 pessoas, 5 vieram, 1%. Esse contato que nossos chefs fazem é muito legal, nessas viagens pra fora, levando nossa gastronomia. No dia seguinte da minha apresentação tinha a apresentação da Lena Flaten, que é uma chef da Suécia, representando Östersund, ela estava com um mise en place muito grande, pra cortar, pra fazer, eu vi que ela estava um pouco atolada de trabalho e eu me voluntariei pra ajudar, ela agradeceu, pediu pra fazer algo – e a gente com uma tábua, sabendo o que tem que fazer, não tem idioma, é só ter um padrão, saber onde tem que chegar, você consegue fazer o que quiser – ajudei ela, a apresentação dela foi muito legal, o pessoal adorou, porque ela levou uma mala cheia só de comida, todo mundo levou o limite que era de 50 provas e ela levou para umas 300. E o pessoal gosta muito da Suécia nessa parte de laticínios, e ela levou bastante queijo, bastante geleia também, eles têm umas frutas muito diferentes. A gente ficou amigo, fez esse contato e ela me convidou pra voltar lá, ela sabia que eu tinha ido pro Noma, tinha falado pra ela, aí rolou o primeiro convite. O evento que a gente fez foi em 2017 e ela falou pra ir no ano seguinte, do meio para o final de fevereiro. Eu fui para Dinamarca mas eu não cheguei a pegar neve. E pra eles é surreal, eles já não aguentam mais [risos]. Me programei, segui fazendo meus eventos, perguntei se podia levar algumas coisas daqui. Eu fiz um apanhado de coisas que eu poderia levar. Pela legislação tem muita coisa que a gente não consegue levar, raiz, produtos vivos – até uma ostra é mais complicado, fresca com semente, porque pode cair no ecossistema deles e prejudicar de alguma maneira, isso é muito importante ressaltar – já aconteceram vários desastres ambientais por causa disso, entra em um ecossistema que não tem predador e vira uma praga. Levei mel, levei grãos, temperos – lá eu descobri que eles gostam de comida muito temperada, levei algumas coisas e pensei que lá eu descobriria o que ia fazer com eles. Eu fiquei dois meses. Eu vivia a rotina do restaurante, numa cidade de 64 habitantes [Storlien] – a Suécia em si é pequena mas pra eles também é pequena, é pouquíssima gente, mas nessa época a estação de esqui está funcionando, então lota a cidade com pessoal que vai esquiar, fazer snowboard, tem muitas dessas atividades e a cidade recebe bastante turista. Só que ela faz esse trabalho muito bem feito, de produtor, ela vai atrás, tem muita coisa que ela produz lá no restaurante, essa parte de sazonalidade ela é muito ligada. Então, na época do cogumelo, ela vai, colhe, sabe os lugares, sabe qual cogumelo tem que colher, colhe um monte de cogumelo e serve no restaurante. Vai chegando próximo do momento de acabar, ela começa a fazer conserva, seca, fermenta e começa a fazer tudo o que dá pra preservar, de maneiras diferentes pra você ter o mesmo produto, até o final do ano, de outras maneiras. Só congelar, tem produto que aguenta e fica legal, mas tem produto que você consegue explorar um pouco mais. Foi muito legal ver isso. E ela faz isso com tudo, morango, peixe… Foi bem legal ter essa dinâmica, ela abriu um dia pra gente fazer um menu juntos, a gente fez um menu de 7 pratos, tudo fazendo a fusão da gastronomia brasileira em geral e sueca em geral também. E foram muito legais as reuniões para se chegar aos pratos, eu fui com uma ideia do que ia fazer, conversando e ela falava “ah, a gente tem um prato parecido, porque a gente não faz assim?” ou “aqui a gente come o arroz desse jeito”. E aí foi muito importante esse diálogo com alguém que tem uma visão totalmente diferente da minha da gastronomia e a gente, ao mesmo tempo, tem critério, tem padrão e tem a noção do que o público gosta, juntar tudo isso foi excepcional.
[NB] E foi dali que surgiu a oportunidade de ir para outra cidade criativa da Rede?
[PS] Dali eu fui direto pro México, pra fazer uma experiência, também fiquei dois meses, não foi em um restaurante. A cidade, que é a cidade irmã da gastronomia da Unesco no México, é Ensenada, o coordenador é o Damian Valles, ele tem uma casa que é um laboratório criativo, ele usa para fazer desde projetos para revitalizar espaço público, projeto social, receber gente para fazer workshops, tem uma cozinha simples mas comporta umas vinte pessoas. Ele me falou, “olha, você vai ficar dois meses. O primeiro mês a gente tem um projeto de revitalização de espaço público, a gente tem uma praça e a gente quer integrar com a sociedade, a gente quer devolver para o pessoal daqui, de um jeito legal”, ele tinha bastante gente, desenhador, escultor de pedra, de madeira, um arquiteto, vários criativos, como eles chamam lá, de pontos de vista diferentes, que trabalham com matérias diferentes, eles se reuniam pra ver o que eles poderiam fazer, porque era uma praça num ponto bem importante da cidade, mas o que ele quis dizer, ela não devolve nada pra cidade porque, por exemplo, se come muito na rua no México, então tinha um monte de lugar pra comer na rua mas a praça não tinha mesas ou algo assim para o pessoal sentar, e até a vegetação, muita coisa que estava ali não era nativo do México. Foi importante ver essa preocupação também e o ponto de vista do que é um gestor de uma cidade criativa também, e eu ficava cozinhando para essas pessoas. Ao mesmo tempo era bom pra mim porque eu estava conhecendo os produtos, eu ia no mercado, nos fornecedores, conhecer bastante coisa, era um laboratório pra mim e ele me preparou para o segundo mês. No último mês era uma aula por semana, e nas três últimas semanas eu ia fazer um menu com cada chef da cidade. E cada um tinha um ponto de vista diferente. Um era , de um bar, outro de um restaurante familiar e o outro de um restaurante que estava no 50th Best. Eram pontos de vista totalmente diferentes na gastronomia. Preparei as aulas, dei aula de cozinha vegetariana, cozinha brasileira, de pães e de fermentados em geral. Eu dei essas aulas e aí cada semana, por exemplo, o jantar era sábado, a gente passava a semana inteira junto com o chef daquela semana, então a gente passava segunda e terça, ele me levava para algum lugar que ele gostava, a gente comia alguma coisa, conversava, eu já tinha bastante ideia de menu, de tudo isso que eu vinha guardando e aí a gente fechava o menu – quarta, quinta e sexta era produção, geralmente eu produzia, porque eles continuavam com a rotina do restaurante deles. E sair da Suécia, que era -30ºC e ir para o México que era +30ºC, uma diferença de 60º…foi muito louco, foi muito legal, nos dois eu comecei a ver muita coisa parecida, o sueco é mais fechado no começo mas depois ele é amoroso igual a qualquer latino, mas ele tem essa coisa de ser mais sisudo no começo, parece até que ele é mais fechado mas com o dia a dia, ainda a gente que respira o mesmo universo da gastronomia tem muito assunto, tem muita coisa, o que eu fazia eles buscavam saber e o que eles faziam eu buscava saber. No México já não, todo mundo mais aberto, parece que você conhece a pessoa faz anos, mas essa parte de produtos, os dois estão muito a frente, valorização, saber de onde vem as coisas, a identidade da gastronomia mexicana é muito forte, eles têm muito orgulho da gastronomia e eles fazem questão de mostrar, você ia numa feira e eles queriam mostrar, me davam, eu comia e falavam “não precisa pagar, mas na próxima você vem aqui, já sabe como funciona, entra aqui e tal”, as vezes a cozinha não era a melhor cozinha do mundo mas eles faziam questão de mostrar. E muita coisa familiar, era o filho descascando, a filha cobrando, a mulher cozinhando. Esse cambio, foram dois momentos que eu nunca imaginei que iam acontecer tão rápidos. Era o que eu sempre sonhei, não vou te falar que não sonhei porque eu sonhei, muito! [risos]. Procuro tentar fazer mais projetos assim. Pro México eu também levei alguns produtos brasileiros, e muita coisa eu consegui fazer lá, por exemplo, a mandioca, é uma coisa que existe no México, não é tão comum no Norte, onde eu estava, mas se consegue e eles comem só cozida. Lá eu consegui fazer farofa, consegui fazer tucupi – eles adoraram! Eles têm muita coisa fermentada, algumas bebidas tradicionais, tepache, que se fermenta o abacaxi ou algumas outras coisas, então, muito bem aceito, jambu eu levei. Eu tinha ido pra Belém numa outra viagem e consegui levar pra lá, o pessoal gostou, o dendê… Tem muita coisa legal que o pessoal adora e é só você ver o jeito que vai integrar isso. Eu não queria fazer uma moqueca, fazer um bobó, queria pegar a linha do bobó e pegar alguma coisa deles, para não ser alguma coisa que eu estou impondo, pro prato surgir naturalmente de uma conversa, ver os ingredientes, saber o que está rolando ali. E fluiu, a gente teve muito feedback bom – das duas experiências, tanto na Suécia quanto do México.
[NB] E nessa viagem que você fez recentemente, você havia comentado que cada semana você representaria uma culinária, isso aconteceu?
[PS] Sim, isso tudo que falei foi em 2018 e eu mantive o contato com todos, fiz muitos amigos nos dois lugares. Eu gosto muito do Damian, porque, assim, uma das coisas que eu mais gostei, dois pontos. Primeiro foi de ver que eles valorizam nossa profissão, tanto no México como na Suécia. Cozinheiro tem peso de artista. Eles valorizam o cozinheiro autoral e o do dia a dia. Eles têm muito respeito. Isso as vezes falta aqui, por mais que a gente fale em visibilidade, em programa de televisão, falta um pouco…se você não é chef de TV ou você não está em um lugar que você tem exposição legal, a realidade do cozinheiro é muito difícil. É um cara sustentando uma família ganhando mil e pouco, dois filhos, é muito complicado, atravessando a ilha, morando no continente pra trabalhar em Jurerê, pegando três ônibus, isso é muito difícil. É saber que dá pra valorizar mais. Seja criando projetos dentro da própria empresa para valorizar, mas assim, você tendo um profissional que ganha bem ele não vai querer te abandonar, ele vai se sentir valorizado, todo mundo ganha, então, é sair um pouco do… botar a mão na cabeça e não ver como um subemprego. E o dono do restaurante saber que o restaurante tem um nome, mas que ali tem muita gente atrás fazendo. Se ele fechou o mês ganhando 10, 15 mil [reais], ele poderia estar ganhando 9, 14 [mil reais], mas valorizando a galera e saber que ele vai ter uma estabilidade, tanto de público quanto financeira e isso vai ser pago lá na frente. Não tentar tirar tudo o que ele investiu em seis meses e aí perde o cozinheiro, ninguém vai mais porque a comida não está boa, ele não sabe o que fazer. Essa parte tem que ser muito discutida, e não é tão complicada assim, é incentivar, é valorizar. Quem está lá a mais tempo porque não pagar um curso pro seu cozinheiro, reciclar ele também, tudo é importante. Qual era a pergunta? Eu fugi…[risos]
[NB] Era sobre essa ida agora para a Suécia, em que cada semana apresentaria um pouco da nossa cozinha.
[PS] Ah sim, exato! Pareceram algumas coisas, a chef da Suécia me chamou para outras coisas. Tem um evento que chama Eat Art Festivalen, que é um evento que tem em julho, saí da Suécia em fevereiro, em abril, maio eu já estava voltando pro Brasil e minha ideia era ficar direto até o final do ano e aí em julho ela falou, “olha, vai ter esse festival na Suécia, é tudo pago, você vem, apresenta e volta”. Começaram a aparecer essas coisas, que era o segundo ponto que eu ia falar. Esse reconhecimento de fora, aqui em Floripa eu não tenho ou é difícil, você como cozinheiro sem contato apresentar um projeto, ninguém te ouve, ninguém te dá bola, e aí eu apresentava a mesma ideia, muito mais simples para um mexicano e ele falava “venha, vamos fazer, venha pra cá”. E eles depois têm um feedback excelente, na Suécia também. Então, você ter esse reconhecimento assim é surreal. Você ser valorizado pelo seu trabalho, por pessoas que não conhecem mas sabem alguma coisa de ti e acreditam em você, isso é incrível. Então fui, fiz esse evento e conheci a Fia [Gulliksson], que é dona de um – depois que eu fui descobrir que foi ela que teve a iniciativa de trazer a Suécia para Cidade Criativa Unesco da Gastronomia, ela começou diversos projetos lá, ela é uma grande idealizadora, ela começa muita coisa, conhece muita gente – ela estava com um restaurante que é um Food Studio, que é um restaurante sem chef, que vai adequando conforme a sazonalidade ou como está a cidade ou clima naquela época. Tem época que eles colocam brunch porque eles sabem que vai ter público. Eles procuram mudar o chef a cada mês ou ficar uma semana, traz desde um chef que era – o Hallye – head-chef do Maaemo [Restaurant, Oslo, Noruega] por um tempo, que é um três estrelas Michelin na Noruega, mas leva também um sírio refugiado para cozinhar também, é um restaurante inclusivo que achei surreal! Não te julga, ela te escuta, ela quer saber, ela quer ver, ela come com o mesmo prazer e mostra, e faz a divulgação do mesmo jeito que uma comida simples de uma pessoa que está passando por uma situação difícil até um cara que quer uma visibilidade ou que está criando nome e tal. Eu fiz esse contato com ela, ela falou “vamos programar uma coisa para ano que vem”. Aqui no Brasil a gente acaba sempre falando isso “vamos combinar” e fica por isso. E lá não, passou um mês e ela já estava me cobrando, “e aí, vamos fazer alguma coisa?”. E aí eu vi que realmente acontece, vamos lá! Me programei para voltar para a Suécia este ano e fiz um mês com a chef que eu estava de novo, fiquei um mês trabalhando com ela no restaurante, tive ótimas experiências, inclusive eu conheci a rainha Silvia, que foi uma pessoa incrível. Uma história que eu lembrei agora, que ela contou, que foi engraçada, eu perguntei pra ela – porque ela perguntou pra mim como que eu cheguei ali e tal – e eu perguntei pra ela, “tu faz comida brasileira, tu ainda tem bastante disso em ti?”. Ela falou, “eu faço, mas eu procuro fazer para a minha família, a última vez que eu cozinhei pros amigos do meu esposo eu fiz uma moqueca, o pessoal comeu e tal e dali a pouco eu vi uma visita levantando e colocando maionese no peixe da moqueca e aí eu falei ‘não faço mais comida pra ele’”. [risos] Mas é o costume, eles comem muito, pra eles peixe e maionese, ou molho ou coisas assim diferentes. Então é meio… é a mesma coisa que você pegar e… pegar o exemplo do meu tio, eu fiz uma vez yakisoba pra ele, ele foi e colocou queijo ralado, porque pra ele macarrão é queijo ralado. Então é meio surreal, a gente acaba vendo umas coisas muito engraçadas [risos]. Bem, aí eu voltei, fiz um mês lá, e aí essa chef do restaurante, do Food Studio me procurou. Eu fiquei todo o mês de maio, é um lugar pequeno, mas lá tem muito disso, por mais que a cozinha seja pequena, é muito equipada. Aqui, as vezes a gente fica economizando para comprar uma bancada, um liquidificador para um restaurante, acaba pegando um mais barato e tal. Lá não, eles já sabem, compram um melhor, não precisa ser o mais caro, mas um bom, que vai suprir minha necessidade pra eu não me incomodar mais com isso. Como eles não têm tanto essa facilidade de ter funcionário e ter muita gente, né, então as pessoas fazem duas funções, tem que ter os equipamentos pra isso, te auxilia muito. Isso a gente tem que por a consciência aqui também, de ver que um equipamento bom na mão de um excelente profissional você economiza tempo e acaba valorizando muito. Eu fiz o mês de maio, foi incrível, consegui levar algumas coisas, e aí eu vi a aceitação deles, ali era um restaurante que eu tocava, e eu vi a aceitação do pessoal com nossos insumos. Pensei, “putz, vou me programar para conseguir voltar com mais coisa numa próxima vez”, que eu imaginei que seria em 2020, e aí quando eu voltei pra cá – no final de junho – ela me falou que estava sem ninguém pra julho e queria eu de novo, eu tinha acabado de chegar. Aí eu comecei a sondar, conversei com outros chefs e comecei a sondar e ver o que ia conseguir fazer. Levei bastante coisa, lembrava de algumas coisas que eu sabia que ia encontrar lá, é bem difícil encontrar comida brasileira, mas você encontra açaí desidratado, em Estocolmo você até encontra o açaí congelado, polpa, mas na cidade que eu estava, que era Östersund, de 80 mil habitantes, é pequena, tem quatro supermercados e é aquilo ali. O que você encontra ali é o que tem. Mas você acaba encontrando muita coisa diferente porque tem muito mercadinho de latino ou de paquistanês e aí você acaba encontrando um feijão preto ou uma farinha de milho, que para eles vai ter um outro uso, mas pra gente tem total diferença. Fiz um menu, e a ideia era essa, pegar algumas caraterísticas diferentes da nossa gastronomia e apresentar pra eles com os insumos que eles têm, pegar a identidade nossa com os insumos deles e com meu lado autoral, juntar esses três pontos. Deu super certo, a ideia foi mais ou menos isso: eu fiz algumas coisas daqui, consegui fazer pastel, as coisas mais simples foram o que eles mais valorizaram – um pastel de camarão, meu deus, adoraram! Toda semana mudava o menu mas teve gente que foi todos os dias durante aquele menu para comer esse prato. Moqueca consegui fazer, fiz pão de queijo – o pão de queijo, o pastel, a farofa… O pão de queijo eu ia fazer ele recheado para fazer no dia da cozinha mineira, e no dia ela passou e pegou um, que estavam esfriando, e ela falou, “nossa, isso daqui está ótimo, vamos servir só assim”, e eu já estava viajando em um monte de coisa. Farofa também era pra ser a guarnição de uma coisa e eles adoraram “não, vamos botar um negocinho disso e já está ótimo!”, as vezes eu estava pensando muito a frente e era bem mais simples do que eu tinha imaginado. A nossa cozinha tem muito espaço, ela é muito criativa, quando eu estou fora e começo a estudar… no começo era difícil ver insumo que eu podia levar, agora já tenho que ficar escolhendo porque não dá pra levar tudo. E a gente tem uma infinidade de coisas que dá pra fazer, que eles aceitam, levei pérola de tapioca, fiz sagu, fiz as variações que dá pra fazer ali, consegui fazer dadinho de tapioca também. Na época do brunch, a tapioca que a gente come com banana e doce de leite, adoraram, porque era uma coisa simples… ela me falou “estou sem ideia para o brunch, o que posso colocar? Não queria por omelete.” Eu falei que aqui comíamos tapioca. Eu tinha levado a tapioca, a goma, para fazer outra coisa. Usei metade pra fazer tapioca, acabou só saindo isso e foi tudo o que eu tinha [risos]. A parte de especiarias também, eu levei puxuri, levei umburana, levei cumaru, que são coisas de diferentes áreas, consegui levar o cogumelo yanomami da Amazônia, que eu consegui ali no Mercado de Pinheiros [SP], a nossa farinha de mandioca amarelinha também consegui levar. Bastante coisa diferente, e que eu tentava seguir uma linha ali meio Amazônia, meio Norte, não tem como só pegar ali, peguei Nordeste… Minas [Gerais] você consegue fazer uma cozinha só Minas, porque tem muita identidade. E a cozinha do litoral, que aí eu peguei, consegui ostra, não tinha como fazer um menu falando do nosso litoral, falando de SC sem falar de ostra. A gente produz praticamente 90%, 80% da ostra de todo o país. Então eu consegui fazer, era uma coisa que tinha muita ideia, por muito tempo já trabalhando com isso, foi um assertivo, eles adoram ostra e não tem lá porque onde eu estava é praticamente começo de montanha. Mas chega muito produto fresco, caranguejo também. Usei a nossa ideia de siri, só que fiz com o caranguejo de mar, que é grande, consegui desenvolver bastante coisa. A parte de sobremesa também. Volto a dizer, com equipamento, você tem lá máquina de sorvete, um bom forno, levei bastante coisa de forma de silicone também, livro, não tem limite. A sobremesa, fiz bastante coisa também, fiz com coisas da Amazônia, fiz com cumaru também, usei geleia, usei araçá, mas o que eles mais adoraram foi o pudim que eu fiz [risos]. É muito louco! Eu fiz um pudim, lá não achei leite condensado mas também nem tinha problema, que seria o clássico, mas pensei em fazer o clássico francês, que é sem leite condensado e vou colocar uma tonka, que vai puxar para uma baunilha, para não usar baunilha – porque não é nem brasileira, nem sueca. E eles adoraram. Eles têm um queijo que chama brown cheese, aqui com o soro do leite a gente faz a ricota, com o soro do leite e açúcar eles fazem esse brown cheese, que é um queijo que lembra muito um doce de leite. É entre um doce de leite e um queijo e ele é muito saboroso. Como eu estava fazendo o jeito clássico, coloquei esse queijo na massa, na preparação, e o cumaru, ficou uma coisa Brasil-Suécia, que eu já buscava fazer e eles adoraram. Teve dia que encomendaram isso! E você vai aliando técnica… uma coisa que eu fiz lá que adoraram também summer roll que é aquele rolinho fresco com massa de arroz, usando uma técnica mais aliada aos produtos de lá com os sabores que eu sei que eles vão gostar. Não tem limite, tu consegue ir e fazer uma boa cozinha, mas sempre sabendo o que é o termômetro deles. Ah, peixe tem que ser mais ou menos assim, não tem como você fugir muito e tentar impor alguma coisa. Lá eles adoram cominho. No México, na região que eu estava, não gostavam tanto, você tem que ter uma noção de até onde você pode ir.
[NB] Pedro, e esse olhar para os insumos brasileiros, insumo local, o sazonal, teve um despertar ou sempre esteve presente?
[PS] O meu primeiro despertar eu acho que foi na época da faculdade, não na parte da faculdade em si, mas ali na parte de contato, estudando, comecei a ver alguma coisa dos chefs brasileiros. As vezes você pegava prato e metade dos ingredientes eu não conhecia. Eu ainda não conhecia tucupi, farinha d’água, aviú, eram coisas que eram daqui, mas eu não conhecia. Comecei a ver que eu estava conhecendo mais coisas de fora do que daqui. Pensei que precisava entender mais, eu começava a estudar, e comecei a ter uma noção melhor, só não tinha o contato, né. Eu sabia, mas nunca tinha provado. Então você estuda, vê lá, o arroz vem do Vale do Paraíba, o cara que produziu, mas eu nunca tinha provado. Então também tem que chegar essas coisas, né. Você pode estudar, ver ali o que é a fruta do Cerrado, o que é aqui da nossa Mata Atlântica, mas você tem saber e provar, porque pra mim pode ter uma função, eu posso imaginar, “com araçá eu faço um vinagrete com uma ostra, vai ficar legal”, mas uma outra pessoa já vê essa geleia com mel da Serra, vem outro e faz uma caipirinha. Então é legal chegar em muita gente diferente, e não chegar a visão de alguém daquele insumo. Eu comecei a estudar um pouco mais sobre isso, e ver um pouco atrás, comecei com Amazônia, porque é aquela coisa, é o mais lúdico de todo cozinheiro, pegar aqueles peixes de rio, pirarucu gigante, os insumos que tem por lá, seja o cogumelo, o cogumelo yanomami fresco ou alguma coisa das frutas. Era mais isso, um sonho, “cozinhar com insumo amazônico dever ser incrível!”, mas aí você começa a ver que nem o daqui ainda domina, como que vou chegar lá? Quando eu estava nesses restaurantes, geralmente você já está seguindo o menu de alguém e isso acho que até me atrasou um pouco, porque você acaba seguindo o menu de alguém, menu de restaurante, tem muito chef que não troca, fica com o mesmo menu. Isso é muito ruim, tanto para o restaurante, porque você vai ter época que o insumo vai estar mais caro e você vai pagar mais caro por uma coisa que está no seu cardápio e você precisa vender, e é ruim para o cliente também porque ele vai deixar que comer algumas coisas que estão na época, que estão perfeitas. Isso tem que ser muito bem alinhado para não ser só uma promoção no mercado, mas que seja criatividade em restaurantes. Quando eu comecei a trabalhar com evento eu comecei a ver isso. Quando você trabalha com evento, tinha um limite, um teto para trabalhar, a partir daquele teto, o que passou daquele teto é o teu lucro que está indo. Então, você fazendo esse controle, alinhando bem, sabendo “ah, fevereiro é a época da lula, vou colocar porque ela vai estar fresca mas também mais barata”, todo mundo vai ter, se eu colocar uma vieira, vai vir do Chile e eu vou pagar mais caro, então tenho que ver o que vou colocar no meu menu porque também vai sair do meu bolso. O cliente, pra ele, vai estar perfeito, ele adorou, comeu, tanto uma quanto a outra vai estar boa, ele vai me pagar, só que vai ser a diferença se eu vou sair dali com vinte reais ou duzentos, trezentos reais. Então comecei a ver bastante isso, mas foi quando eu trabalhei nesse restaurante na casa do Vitor Gomes, ali que fui obrigado a mudar o menu toda semana, ali eu comecei a despertar mais, sair um pouco do discurso e ir um pouco atrás, “tá, vamos ver o que é época agora”. A gente fazia a lista de compras, e no meu tempo livre ou ali pelo hotel também, eu tinha contato com fornecedor, eu que fazia pedido, então saber o que estava vindo, eu cobrava bastante isso dos meus fornecedores. No hotel, as vezes, você não consegue tanto explorar isso, esse é um lado ruim do hotel, porque você tem que ter o salmão, tem que ter o mignon, isso é chato até, mas acredito que vai mudar, começa com uma guarnição que você vai mudando e tal até que você consegue abolir um pouco disso e isso não ser excepcionalmente “pô, hotel que não tem salmão não vale a pena”… Então, eu comecei a conciliar os dois lados, o lado bom das duas partes, o contato no hotel com os fornecedores me abria mais a cabeça pra eu poder desenvolver mais o restaurante, eu ia atrás de insumo, isso era bom para o meu chefe, porque acabava pagando menos, e pra mim porque eu estava sempre com insumo perfeito, eu trabalhava com insumo 100%, as vezes você fazia uma sobremesa, você pensava “o que vou fazer com esse melão?”, e ele estava tão perfeito, tão madurinho, que se eu fizer uma geleia, alguma coisa, eu vou estragar, então pegava só no mandoline, fazia tipo um carpaccio, e a partir disso fazia um prato. As vezes só precisa de um corte ou de um jeito de apresentar, porque você não precisa de intervenção de fora ou de algum outro insumo. Isso foi muito importante pra mim, desse tempo todo assim, foi aí que eu comecei a despertar. E você ver isso fora sendo valorizado há muito tempo, não faz sentido. O evento que a gente conseguiu fazer na vindima, pra gente foi uma conquista, mas não deveria ser. Deveria ser só mais um evento normal que a gente conseguiu alinhar produto-produtor e usar quase 100% dos produtos locais.
[NB] Esse projeto, esse evento que foi na vindima [Serra Catarinense – 2019], ele está dentro de um projeto de uso e valorização, reconhecimento das frutas nativas do bioma da Mata Atlântica, aqui da região Sul – do litoral de Florianópolis até o início da Serra Catarinense. As vezes você tem alguns insumos dentro desse bioma que são desprezados, deixados de lado, porque as vezes não reconhece aquilo como um insumo com valor gastronômico – uma goiaba serrana que vai pra alimentação do porco, por exemplo. Como foi o processo para utilizar esses insumos locais, esses que muitas vezes são desprezados ou são desconhecidos, foi tentativa e erro, pesquisa, estudo, observação, alguma prática transmitida?
[PS] Então, algumas coisas foram de conhecimento, por exemplo, o araçá tem no interior. Ali em Anitápolis, onde o meu pai teve casa muitos anos atrás, onde ele passou a infância. As vezes a gente ia pra lá e eu lembro de ter araçá, de ter esse pé e eu comer dele. Você sempre faz a associação da árvore que está ali e você comia e é isso, você não pensa em utilizar isso. Eu lembro que quando estava no Noma, em 2012, uma das atividades diárias que a gente fazia era sair do restaurante, escolhia 3, 4 estagiários e levava para um praça pra colher PANCS [plantas alimentícias não convencionais] e coisas que tinham ali, coisas que não têm fornecedor. Isso ficou na minha cabeça, “como que posso fazer uma coisa parecida com isso” ou “o dia que eu tiver meu restaurante vou ter essa atividade também”, sei lá. E aí, quando surgiu a ideia – na verdade a Vinícola Abreu Garcia, as atividades que a gente faz lá não acontecem sempre, por ser uma vinícola mais afastada [de Florianópolis], a vinícola mais próxima é a Thera, que fica há uma hora e pouco [de Florianópolis], então você consegue ir, comer o menu e voltar, a partir de quatro horas, é difícil você atrair alguém de Florianópolis para ir, ainda beber vinho e voltar, a gente tem uma visibilidade legal, mas não é a vinícola com mais movimento, devido a esse tipo de coisa. Então, quem vai lá é alguém muito interessado, provavelmente pegou um hotel em Lages ou é o público de Lages, então a gente valorizava muito as nossas idas à Vinícola Abreu Garcia e sempre tenta fazer alguma coisa diferente. Só que lá não tem muito… o mercado mais próximo acho que fica a duas horas dali, só de estrada de terra, você lembra, tem uma hora de estrada de terra, então você não pode se dar ao luxo de esquecer nada. E foi justamente um pouco daí que surgiu. A gente foi fazer um evento, se eu não me engano, o Fabricio [Kleis] não pode ir e eu fui sozinho, era para 15 pessoas, e quando cheguei lá o enólogo falou, “olha, o grupo subiu para 20”, e eu tinha que tirar comida e eu não tinha de onde tirar comida. Fui olhar no entorno e tirar alguma coisa. Fiz o que fazia no Noma, o que eu sempre quis fazer, só que num âmbito maior. Graças a Deus eu fui com tempo, eu tinha tempo pra isso, em outra condição não teria sido tão valioso esse tempo, e achei muita coisa que tinha ali e que eu nem imaginava, tinha muita coisa que foi colocada ali e muita coisa que era nativa dali. Algumas coisas eu não conhecia, falava com o pessoal de lá e você vê que eles já têm a dinâmica disso tudo, que é muito informal, fica na casa das pessoas e não sai dali. Foi muito importante o contato com a Dilcéia, que você conheceu também, que ela mora ali. Isso foi muito bom, comecei a alinhar isso, as lembranças das coisas que eu já conhecia daqui, tem muita coisa que eu fui descobrindo depois. A uvaia eu não conhecia, o araçá pra mim era só o vermelho, não lembrava desse amarelo e aí eu fui vendo que tem muita coisa, é surreal e você vai aprendendo muita coisa, você vai alinhando o que tu já sabe com o que tu já faz e é aquilo ali. Não é tudo fruta, é tudo insumo. Uma jabuticaba pode virar uma coisa, o araçá vira outra e a uvaia e a goiaba também e você tem um menu inteiro, não é só tipo fruta que você colocou ali ou tudo sobremesa, não. O que o NEG [Núcleo de Estudos em Gastronomia/IFSC] faz também é muito importante, eles fazem essa parte criativa, eles criaram o catchup de araçá que é excelente! São coisas que você pode tirar uma baita guarnição, você pode tirar o protagonista de um excelente prato, isso foi o mais importante, para despertar isso. Quando surgiu a ideia, eu sabia que ia ter a vindima, que ia ter um pouco de visibilidade e pensei em fazer o menu, tentar usar o máximo que eu conseguisse dali, mas falei “putz, sozinho não vou conseguir”, e também nessas horas é bom dividir as ideias e achar gente que é interessada, por isso que a gente foi atrás de ti, foi atrás da Fabi [professora Fabiana Mortimer/IFSC], do Renatinho [ Renato Herardt Faria/Quintal di Catarina], do pessoal do Campus de Lages [IFSC – Lages], e tudo já estava acontecendo ou todo mundo tinha o mesmo interesse e foi só unir as coisas, foi uma coisa que foi muito mais fácil, acabou fluindo muito perfeito. Ninguém sentiu aquilo como trabalho, na real. Foi um dia que deu pra todo mundo colocar o que sempre quis e explorar isso, que nem você falou, muito insumo beneficiado porque o cara não sabia que aquilo ali tinha dinheiro, que se comia, ou que se podia vender. Isso aí são os pequenos passos que a gente vai dando para coisas maiores.
[NB] E você incorporou esses insumos na sua cozinha?
[PS] Sim! Agora a gente vai ter uma aula [link da matéria], a gente vai usar a uvaia, o araçá amarelo. Agora é época da gila, eu sei que a gila a gente consegue bastante na região de São Joaquim, Urubici, mas acredito que tem em toda a região do pé da serra [catarinense]. Então é assim, descobrir a sazonalidade disso também. A parte de fruta é muito bom ser congelado, aguenta bastante, algumas vão perder cor, mas aí vai o trabalho de investigação, de saber o que você pode fazer compota, o que você pode fazer uma redução, o que você consegue aproveitar. No caso da goiaba serrana você consegue aproveitar a casca fazendo um pó, e ela tem um sabor muito próximo da noz moscada. Então é saber estudar isso e saber até onde a gente pode chegar. Eu tento alinhar isso agora, essas aulas que eu dou, eu procuro alguém que já trabalha com isso, por exemplo, o Renatinho ele vive disso, ele vive da sazonalidade, porque a partir dali, da época do tomate, ele vai e faz tal coisa, ele trabalha [o insumo]. O mirtilo dá bem ali naquela região, então ele vai fazer uma geleia. A época do cogumelo, do porcini, ele vai atrás, ele tem isso porque ele depende disso para poder fazer as conservas, os produtos que ele vende. Eu sempre procuro ele, porque você tem que saber quem já está fazendo isso, valorizar essas pessoas, a Dani [Daniela Carneiro – Universina Alimentos] de Lages, faz um trabalho incrível, ela está em desenvolvimento, não, porque já existe o insumo, mas ela está ajudando na popularização do arroz periquito, que é um arroz vermelhinho, ele tem um amido muito próximo ao arbóreo, então tu consegue fazer um risoto tranquilo com ele. Ela faz esse trabalho muito incrível de tentar buscar, que é além do que a gente está. A gente está querendo popularizar o que a gente já sabe, ela está pegando coisas que são nativas, só que a gente ainda nem tem o acesso e está tentando trazer pra gente, para aí a gente conseguir popularizar, é uma coisa muito importante, uma cadeia, contato, um ajuda o outro, não tem como você ter um ego grande “vou usar esse produto, só eu quero usar, vou ser o único de Florianópolis que está usando”, não, isso não faz sentido. Porque se você quer ter ele o ano inteiro, o cara tem que vender, pra ele vender, um cozinheiro sozinho não faz nada, por mais que faça um monte de evento. O cara tem a família dele, se ele ver que aquilo não é rentável, uma hora ele também não vai mais produzir. Também é bom para desmitificar que Serra é pinhão e deu. É vinho, tem muito mel, tem muita fruta, cogumelo também, das coisas que ela faz… essa cebola desidratada, algumas coisas desidratadas, isso também vai do equipamento, do interesse dela de ir atrás disso, você vai plantar, se você não conseguir vender, uma hora você tem que…você como produtor, putz, se você não conservar isso de um jeito que ainda seja atrativo para a pessoa comprar, também não vale de nada, vai ter um freezer cheio de fruta congelada. Pensa nisso como uma maçã, maçã congelada ninguém quer comprar, agora, um suco concentrado de maçã já vale mais. Então, é trazer isso para as outras coisas. Essa cebola roxa desidratada eu levei para Suécia e fiz um tartar de alce – que eles comem bastante – com a cebolinha dela por cima, aí eu mandei a foto pra ela, ela ficou muito feliz. Muita gente que faz… ela e o Renatinho são fora da curva porque estão batalhando mais nisso, são bem criativos, mas uma foto dessa ela pode usar de divulgação, de munição, não é todo mundo que tem rede social, que fica ativo e tem que ter. O que puder fazer para ajudar a popularizar ou valorizar, é muito importante.
[NB] Você comentou que anda com um caderninho para as inspirações. Ele está sempre contigo?
[PS] Sim, ele fica na minha mochila. Onde estão minhas facas, eu vou estar com ele. Na época desse restaurante [o bistrô com cardápio semana], eu era obrigado. Foi uma das coisas que ajudou a trabalhar esse ponto da criatividade. Ali eu procuro anotar receitas que eu tenho 100% de certeza, receitas que eu já fiz e já testei. Porque, as vezes, você vai buscar na internet e nem tudo é 100% correto. Até livro, se você não testar e não fizer, porque livro as vezes acontece… por exemplo, leite na Suécia tem mais gordura do que o leite daqui. E ele não é vendido por integral, desnatado, é por porcentagem de gordura. Ele vai do desnatado até o creme de leite, só por porcentagem. Então uma receita com leite daqui não é igual uma com leite de lá. Você tem que ter essas receitas assertivas, e é base. Então, você anota ali, creme brüllè, você tem uma receita de creme brüllè que funciona, a partir dali você pode fazer mil coisas, um creme brüllè de pistache, um creme brüllè de araçá, você pode fazer milhões de coisas diferentes.
[NB] Pedro, você passou por vários países, várias cidades, viajando a lazer, a trabalho, fazendo estágio, como que você percebeu a educação, o papel da educação em gastronomia por esses lugares que você passou?
[PS] Muito, muito importante. Na Suécia eles valorizam muito essa parte da escola de gastronomia, tem-se muito isso. Praticamente todo mundo que eu trabalhei lá era cozinheiro de formação. Pouquíssimos não eram – o caso de um sírio que veio como refugiado, estava ali fazendo o que ele fazia na família dele. Mas se tem muito [cozinheiro de formação], e são cursos de quatro anos na Suécia, muita base clássica francesa. Mas lá eles têm muito desses pequenos cursos, para ensinar o produtor, isso é legal. Se você é um produtor de geleia, você consegue fazer um curso focado, porque tem um centro de investigação que só cuida do que é cultural, sueco. Ali consegue se reciclar sem precisar ficar numa faculdade e ver coisas que ele não vai precisar. Tem vários níveis de ensino, você consegue pegar quem quer fazer carreira – lá eles não falam em pós-graduação, tem outra denominação essa parte depois da formação básica. Aqui, depois que você se forma você fica meio perdido, as vezes eu sinto um pouco isso, você vê uma – isso é legal de se falar – uma pós-graduação ela é muito cara para um cozinheiro que ganha mil e pouco, dois mil [reais], e você tem que… eu lembro que antes de ir para a Espanha eu pensei em guardar o dinheiro e fazer uma pós, em vez de ir para a instituição do Ferran Adrià, mas eu tinha que me mudar de cidade de novo, ia ter que ir pra outra cidade, os horários das aulas da pós eram umas horas assim, tinha dia que era uma da tarde, tinha dia que era sete da noite, então não conseguiria ter um trabalho, tinha que estar disponível só pra isso. A Pós Graduação de Gastronomia não é feita para quem trabalha com Gastronomia. É feita para quem tem tempo livre ou está muito bem para poder se dar ao luxo de fazer, eu acho isso um pouco errado, poderiam ter algumas opções – que seja um outro nome, não chame de pós – mas algumas coisas assim, foco em gestão, hoje tem tanta coisa a distância que é bom. Faltam algumas coisas na parte de gestão, pra você ver que o cozinheiro, depois que ele se forma, ele pode ser um gestor, pode gerir desde um hotel, um restaurante, saber bem essa parte, ele não precisa ficar enfiado numa cozinha, ele tem como sair, porque a rotina da cozinha é desgastante e tal, e você não vai aguentar isso até 60 anos. Então você tem que ter [conhecimento em gestão], como é que você vai fazer para poder ganhar um pouco mais mas sem precisar pagar muita grana, porque ainda tem sua família que você está sustentando. Eu acho que isso falta, uma pós ou um curso que seja voltado para essa galera que não tenha um curso tão alto. À distância dá pra fazer tanta coisa legal, deve ter tanto material que dá pra coletar, isso foi um negócio que eu vi que foi legal lá, tem bastante curso diferente. Existe uma faculdade em Tijuana, eu dei uma aula lá, e é muito, muito… Começou bem pequena e hoje é a maior instituição do México, eles fazem um trabalho incrível, os laboratórios são muito estruturados mas tem muita coisa que eles fazem pra ajudar quem é carente, tem muito curso que você consegue fazer ou consegue bolsa, é muito mais fácil. Aqui no Brasil você tem que entrar em uma fila e pode ser que vá ou não e as vezes consegue porcentagem, mas de qualquer jeito fica pesado, lá, essa parte – não é tão forte quanto Suécia, claro – mas essa parte, todo mundo cozinha bem [Tijuana]. Na Suécia ainda não, tem gente que não sabe nem fritar um ovo – como aqui no Brasil – lá todo mundo o básico sabe fazer. Todo mundo sabe fazer uma boa tortilla, tem algum taco preferido ou sabe fazer alguma coisa diferente, todo mexicano que conheci sabia. Aqui não. Não é todo brasileiro que sabe fazer uma feijoada, um pão de queijo do zero, então é, isso é mérito deles, dessa bandeira de levantar cultura e saber tanto que chegam aqui. Eu lembro que na Suécia, no mercado da Suécia, nessa cidade de 64 habitantes, tem uma parte do mercado de cozinha mexicana! Imagina como que chegou lá?! Não é só porque é saborosa, é porque é autêntica, é diferente de tudo que vinha ali de França, Itália, vem uma coisa totalmente diferente. Isso é legal de ver também, um país latino também, porque não o Brasil? A gente tem tanta identidade diferente.
[NB] Essa questão da identidade, você comentou anteriormente, e agora também, a questão da identidade do México, que é muito clara – e na Suécia também. Se a gente for falar de identidade, se a gente for pensar em Santa Catarina, qual a identidade de SC, qual a identidade de Florianópolis, principalmente, quando a gente pensa que é uma Cidade Criativa Unesco da Gastronomia, que isso estaria bem forte, marcado, delimitado.
[PS] Aqui, como a gente fala, se você pega Minas, tu consegue contar mais de dez pratos na mão muito fácil, mas não é todo estado que você tem uma associação tão imediata. Se você pegar Tocantins, por exemplo, não te vem assim tão farto como Minas, ou São Paulo, de prato típico que nasceu em São Paulo, que te vem, lógico, existe um monte, mas que é tão autêntico como uma comida mineira, uma comida baiana ou até no Rio Grande do Sul, esses pontos acho que são mais autênticos. Mas Florianópolis, acho que de imediato, por ser Florianópolis, por a gente estar aqui, essa parte da ostra, não tem como fugir porque a gente abastece praticamente o país, mas, assim, a gente que trabalha na área, a gente acaba tendo uma outra visão. Acho que quem vem de fora – acho até que eu estava discutindo isso um tempo atrás – quem vem de fora vem pra Floripa e quer comer frutos do mar, quer comer peixe, sequência de camarão, siri e tal. Acho que foi isso que a gente discutiu na aula. A gente precisa melhorar nossa legislação pra isso chegar mais fresco, isso chegar mais fácil do pequeno produtor, do pequeno pescador, para não ter tanto atravessamento de empresa e encarecer o produto e tal, mas isso dá pra servir melhor o teu cliente. Então, assim, não é errado o cara vir e querer comer um camarão frito. Lógico, fritar o camarão não é a melhor maneira de servir ele, mas se ele for um camarão bom, bem feito, de uma procedência legal, sem sulfito e tal, não tem porque não ser um atrativo. Tudo que é em prol da gastronomia é válido. Você vai ter ali sequência de camarão, como começaram esses lugares, você vai ter ali 3, 4 que serviam ostra, 3, 4 que serviam outra coisa e sempre vai ter um quinto fora da curva que vai servir alguma coisa diferente – que é o que vira o Ostradamus, que é o que virou o Narbal [Correa – Rita Maria Lagosteria e Rancho do Bom Pescador], que começou a ir atrás, mergulhar, que falou, “pô, eu sou mergulhador”, ele tinha o melhor marisco porque ele pegava na hora, ele era o único que tinha ouriço, porque era ele que buscava, porque é um negócio que dá trabalho, o pescador não consegue pegar o ouriço assim, tem que mergulhar, tem que pegar. Você poder valorizar essas pessoas, Jaime [Barcelos – Ostradamus], Narbal, que vão fazendo e vão trazendo o que é novo e apresentando de uma maneira diferente o que a gente já conhece e quem ganha isso é o turista, ele vem pra Floripa, ele vai comer, vai ficar uma semana, um mês? Quem vem pra cá costuma ficar uma semana, no mínimo. Você não vai comer sequência de camarão todos os dias, você vai querer alguma coisa diferente, você não vai querer comer hambúrguer, você vai querer comer alguma outra coisa, qual é o outro atrativo? Você tem que ver o que os outros profissionais estão trazendo, então, isso é legal, tem que ser divulgado, e assim, tem muita coisa em Floripa. Você pega os engenhos de farinha [de mandioca], eles fazem um trabalho muito legal. A consertada ali mais pra cima [litoral Norte de SC], também é uma coisa muito massa. O Morro do Mocotó [Centro de Florianópolis], que surgiu por causa do mocotó que faziam lá. Então, tem muita coisa que eu acho que dá pra valorizar e é legítimo, e é daqui. Foi criado aqui, seja lá de imigrante ou não, nasceu aqui, é legítimo de SC, de Florianópolis, acho que mais ou menos isso. Não é errado ter o convencional, ter o que todo mundo faz, mas pra esse ponto a legislação ajudaria a ficar melhor. Acho que eu fui uma vez na [praia da] Joaquina comer uma sequência, o camarão não estava legal, o marisco era o marisco congelado, estava mal feito, e aí envolve duas coisas que faltaram: técnica que faltou, ensino ou alguém lá puxando a equipe pra ser bem apresentado e o insumo não estava legal porque provavelmente veio congelado de não sei quanto tempo. Então é isso, não é errado você fazer o habitual, mas pra ele ser bem feito você tem que unir a técnica, o ensino do teu profissional, a valorização do teu profissional e o insumo de onde ele está vindo. E valorizar quem faz o que é fora da curva. E esse pessoal acaba fazendo… ele vai andando sozinho, né. Narbal e Jayme não precisam de divulgação, eles conseguem fazer tudo isso.
[NB] Pedro, como você vê Florianópolis enquanto uma Cidade Criativa Unesco da Gastronomia, o que isso significa, o que é ser uma Cidade Criativa Unesco da Gastronomia?
[PS] Então, no começo eu também me perguntava. Minha irmã mora em São Paulo, sempre que eu vou viajar eu passo por lá, fico na casa dela e quando eu conversava com as pessoas ali eu comentava, “ah, Florianópolis é uma Cidade Unesco da Gastronomia”, todo mundo faz uma cara meio feia, não por que não mereça, mas pensa assim, “pô, gastronomia é Rio e São Paulo, né?”, são os eixos que mais vendem. Se você pegar os melhores restaurantes, os mais premiados, volume de venda, é Rio e São Paulo, é onde tem o maior fluxo de turista e tal. Todo mundo meio que não entendia assim, e eu comecei a refletir também, e fui vendo, “tá, mas no México é Ensenada e também, o fluxo de venda é Cidade do México”, você pega lá na Suécia, por que Östersund, que tem 80 mil e não Estocolmo, que é a capital? E aí eu comecei a ver que os critérios eram outros, né? Primeiro vai do interesse da cidade se candidatar, tem uma série de critérios, você sabe melhor do que eu, essa parte eu não domino tanto, mas quando eu comecei a ver, envolve tudo, desde a beleza natural, valorização, o orgulho que o povo tem. Então, quando eu comecei a refletir, eu vi “não, merece com certeza e não deve nada para nenhuma outra cidade”. Lógico, em termos de estrutura isso já entra em outras partes, não tem muito o que falar, é outro ponto, mas Florianópolis, todo mundo desses lugares que eu fui tem muita vontade de vir para o Brasil e conhecer. Isso já é um ponto: eles têm o interesse. O que eu apresentei nessas viagens, seja na Espanha, no México, na Suécia, na Noruega também, eles adoram a comida, então, eles gostam do sabor e têm o interesse. Alinhar isso, falta juntar isso, como que pode melhorar? Como Florianópolis já ganhou um título, já tem esse título, já é representada por isso, fazendo os eventos, fazemos evento fora, levando a identidade, mas acho que ela tem que se valorizar, na parte de criar mais evento, ter uma agenda maior, né, você chegou a ir pra Macau, a agenda de Macau deve ser surreal quem coordena isso, deve ser um evento a cada mês. Deveria ter um cronograma muito maior [em Florianópolis]. A Fenaostra já existia antes, não é mérito da Confraria Cidade Unesco. Acho que deveriam ser criados novos eventos, e a partir disso virão mais chefs, mais representantes, e com mais pessoas estando aqui, vivendo aqui, vendo o amor que a gente tem pela cultura e tal, isso vai refletindo, vai respingando, é mais negócio, é mais ideia, é mais parceria com outras cidades, acho que isso é o essencial. Agora, eu sei que não é fácil também, porque envolve muita coisa, vai desde prefeitura, até juntar uma galera e fazer isso acontecer. Todo mundo tem que estar comprometido pra isso acontecer, mas eu acho que dá. As outras cidades fazem, a nossa cidade irmã que é Belém, ela é muito mais ativa em eventos, né, então é perder essa de Floripa só vale vir – do turista vir – no verão, ela pode se manter fora, geralmente é isso, verão, aí tem o Ironman, que respinga um pouquinho depois e aí morre, e tem que ficar indo pra Serra e pra outros lugares porque não tem atividade [aqui]. Eu acho que dá, que tem se criar, não precisa de eventos gigantes, eventos pra mil pessoas, mas fazendo assim, pegar, traçar o que é legítimo daqui, ah, ostras, já foi explorado, tem o carnaval, mas pegar o que é mês tranquilo, o que pode fazer? Tem a tainha, tem não sei o quê, e não festas isoladas, peixada de não sei quem, feijoada de não sei quem, isso não… isso é só uma pessoa que ganha muito dinheiro. Acaba movimentando? Sim, mas tem que ser a bandeira da cidade, não de uma pessoa, não de… não é valorização.
[NB] Na sua visão, quais são os rumos da gastronomia em Florianópolis e no Brasil?
[PS] Então, eu acho que a gente está com muita visibilidade, né. O Brasil começou ali com Alex Atala mostrando um pouco da Amazônia pro mundo. O Brasil começou a sair um pouco daquele estereótipo de “futebol, mulher, carnaval”, o pessoal começou a ter uma visão. Hoje tem gente que vem pra cá só pela gastronomia, então você acaba tendo uma aceitação maior, é claro que se formos falar em infraestrutura, violência, são coisas que têm que ser melhoradas, óbvio, mas eu acho que a nossa gastronomia não perde para nenhuma outra, acho que até o brasileiro é muito criativo e ele tem que alinhar isso com os insumos 100% autênticos, daqui. Tentar – quando pensar em elaborar um prato, criar alguma coisa – focar um pouco no que é autêntico, seja da sua região ou seja de explorar algum outro bioma para não cair na mesmice. Isso é bom para o lado autoral, isso quem ganha é todo mundo, a gente já viu isso, produtor, teu cliente. Isso está acontecendo, não pode deixar de ser exercitado e seguir acontecendo. Eu acho que agora, com o guia Michelin, faz alguns anos que começou, isso também vai trazer um pouco desse ar sério, de estrela, tem lugares excelentes, tem gente que só caça restaurante estrelado. E aí volto a dizer, numa dessa que o cara vem para comer em um desses ou numa viagem que ele vem para ter outra atividade, seja um executivo ou seja…é dali que você acaba ficando mais tempo e o que vai te surpreender não vai ser aquele ponto que você foi resolver ou que tu foi comer ou a reunião que tu foi fazer, mas é o que você vai conhecer no entorno ali. É comer uma comida de rua bem feita, é comer num restaurante simples, é comer uma fruta que você nunca comeu, isso acho que é legal, que tem que crescer e está crescendo e eu acho que o brasileiro conhecer o próprio Brasil também, né, isso também é muito importante. O Brasil tem muita coisa que a gente não conhece, e o que é explorado também não é muito divulgado, esse acesso de insumo entre regiões também, tem coisa que chega e tem coisa que não, e, as vezes, não é por logística, é por desinteresse, isso tem que ser mudado, nas universidades tem que se falar mais de biomas, mais de onde vêm as coisas, focar, lógico, na técnica, mas história é importante, o que é legítimo também tem que ser colocado no mesmo nível. E é isso, acho que Florianópolis cresce muito agora com a chegada da Cidade Criativa Unesco mas tem muito o que caminhar, nessas reuniões que a gente vê, que tu já foi, tem muita coisa que a gente vê que é surreal, sejam os peixes lá que te mostrei como é o mercado de peixe de Dénia [Espanha], que é uma coisa absurda do sinônimo de peixe fresco chegando pro chef ou pro dono do mercado ou pro dono do hotel. É pegar isso, pegar os bons exemplos de tudo e tentar trazer pra cá, não parar numa pilha de ideias de projetos, é insistir. Porque isso foi muito bom por esse lado, né, da parte de conhecimento, a gente vai vendo coisas que as vezes só sonhava, “putz, será que dá?”, não, na França a gente vê muita coisa legal, esse exemplo da Espanha, da Suécia, na parte de legitimidade, de cultura, isso é, as vezes, um pouco do problema do Brasil, porque é muita gente, e as vezes não se conversa, as vezes tem pessoas fazendo a mesma coisa, sem saber e se conversasse e se unissem, andaria muito mais fácil. Mas isso que é importante nos eventos, nesses eventos você acaba conhecendo as pessoas, você acaba divulgando, fazendo esses contatos, porque as vezes você fica ali acostumado no seu dia a dia, faz evento, faz não sei o quê ou no dia a dia do teu restaurante. E quando tu sai da sua zona de conforto, tem que estar disposto a isso, e dali tu acaba fazendo contato, dali sai alguma ideia, sai algum projeto e acho que isso é o mais importante agora.
[NB] Pra finalizar, falar de gastronomia é falar de fome?
[PS] Com certeza, com certeza! Como eu destaquei agora, não pode ser nada elitizado. Esse insumo que vai chegar – que é o que a gente está batalhando agora – a gente quer que chegue a uvaia, que chegue a gila, que chegue a goiaba serrana, que tenha mais produtor de jabuticaba, só que não quer que isso seja caro, isso tem que ser acessível a todo mundo, e não só para as frutas. E o que não é caro – o que está acessível na mesa do brasileiro todo dia – tem que ter mais qualidade, menos agrotóxico, que é o que a gente vem falando também. Não adianta nada você conseguir comprar a carne e o feijão, a pessoa mais simples, mas o feijão está cheio de agrotóxico e a carne uma ração, hormônio e a pessoa não vai ter qualidade de vida. Esse tema de indústria não tem que ser visto como uma coisa ruim, a gente é obrigado a ter produção em massa de algumas coisas, um país pequeno como a Suécia, Dinamarca, consegue se dar ao luxo de ficar um pouco alheio a algumas coisas dessas, consegue ter uma casa que tem todos os elementos da alimentação orgânicos, a carne ecologicamente produzida, aqui no Brasil não é essa realidade, no México também, os EUA também, então a indústria tem que vir para agregar, não para simplesmente cortar, ser uma coisa barata que tenha lucro para alguém, não. É justamente o contrário, você está alimentando praticamente o Brasil inteiro, porque não é todo mundo que tem condição de sair para comer em restaurante, que não é todo mundo que tem condição… tem gente que vai morrer sem saber quem Alex Atala. Essa pessoa, ela tem que comer bem e isso vem da indústria porque tem gente que a vida inteira só vai conseguir comprar coisas de supermercado ou conseguir produzir coisa em casa, e o que vem de fora tem que ser bom, tem que ser sem agrotóxico. A gente tem tanta legislação que barra um monte de coisas, mas nesse quesito a pessoa passa impune. Acho que isso é muito importante.
(Observatório da Gastronomia, 27/02/2020)