18 jun Prefeita de Paris: As cidades são o antídoto para o populismo
Anne Hidalgo, também presidenta do C40, organização que reúne as maiores e mais prósperas metrópoles do mundo, aposta num futuro com mais internacionalismo que nacionalismo. E com uma Europa mais forte. Socialista, filha de imigrantes espanhóis, polêmica em suas declarações públicas e decisões políticas, seu nome não deixa de soar como possível candidata a se tornar a primeira mulher presidenta da França.
Anne Hidalgo (San Fernando, Espanha, 1959) é mais do que uma prefeita. Sim, é a prefeita de Paris, que no mínimo desde o século XIX é a cidade por excelência, modelo e laboratório no mundo, que agora inicia os preparativos para organizar os Jogos Olímpicos de 2024. Mas, além de seu cargo na capital francesa, preside o C40, uma organização que reúne as 92 maiores cidades do planeta, com 650 milhões de habitantes e dois terços da riqueza mundial.
O C40 é de fato uma autêntica potência, que reflete o poder urbano perante problemas urgentes como a mudança climática e as crescentes desigualdades. Na próxima segunda-feira, dia 26, prefeitas do C40, entre eles Hidalgo, se encontram no México por ocasião da segunda conferência Women4Climate (Mulheres pelo Clima), onde abordarão questões que vão do poder feminino à inclusão social e a inovação.
“Se não forem tentadas políticas voluntaristas, o mercado imobiliário pode acabar com esta classe média que não conseguirá mais viver no centro das nossas cidades.”
Hidalgo, filha de imigrantes espanhóis na França, é um exemplo da existência da meritocracia republicana, o mais parecido com o que se poderia chamar de sonho francês. Também é hoje a política mais destacada de um Partido Socialista mergulhado numa crise existencial; seu nome nunca deixou de soar como uma possível candidata a ser a primeira mulher presidenta da França.
Pergunta. Que políticos lhe inspiraram quando começou a se interessar pela coisa pública?
Resposta. Foram mais personalidades do feminismo. Influenciaram-me Simone de Beauvoir e Simone Veil, que não era uma mulher de esquerda. Personalidades políticas? Li Jaurès e Blum: toda a literatura de esquerda. Mas também me marcaram pessoas mais contemporâneas, como Lionel Jospin. Quando Jospin volta em 1994 à direção do Partido Socialista, depois das eleições de 1993 – que foram um desastre para a esquerda –, teve um discurso sobre a democracia, a transparência, a modernidade e as mudanças sociais em temas como a igualdade de mulheres e homens que me levou a entrar no Partido Socialista.
P. São curiosos os mapas eleitorais e a diferença nos votos entre a cidade e o interior. Ocorre na França, mas também nos Estados Unidos, por exemplo, e em outros países. Você impulsionou as alianças de cidades. As cidades são um freio para o populismo?
R. Pelo que somos, somos um freio ao populismo. Em uma cidade como Paris, seria possível pensar que depois dos atentados de 2015 – tínhamos eleições regionais em dezembro, menos de um mês depois –, as forças de extrema direita e populistas teriam votações importantes. E ocorreu que em Paris as forças populistas obtiveram resultados muito baixos: menos de 6% para a Frente Nacional nos bairros golpeados pelos atentados. Há quem pense que é porque nas cidades só vivem pessoas ricas, com alto nível educativo. E é verdade que nossas cidades são atrativas para os ganhadores da globalização: pessoas jovens, ativas, cosmopolitas, com uma cultura internacional e uma capacidade de trabalhar hoje em Paris, amanhã em Nova York ou em Londres. Pessoas que falam vários idiomas, que são formadas nas novas tecnologias e vinculadas com a economia digital. Mas há algo que constatamos, os prefeitos na rede C40: que nas nossas cidades vive esta população muito criativa, mas também outra que precisa buscar proteção. Trata-se de gente que perdeu seu trabalho, sua situação profissional ou familiar, porque estão excluídos, ou gente que precisa buscar proteção porque são refugiados, imigrantes. E veem que aqui há luz e esperança, e possibilidade de uma vida um pouco mais pacífica, onde podem encontrar o essencial. Ou seja, uma vida segura, porque há um sistema de saúde e de educação, porque há solidariedade com a gente mais pobre. Em nossas cidades vivem estas duas populações. E no meio, a classe média. A classe média das nossas cidades considera que precisa dar as mãos a quem não vai bem, mas também ter os serviços que lhe permitam ficar na cidade entre estas duas populações. Para mim, nesta composição, muito mesclada sociologicamente, muito internacional e cosmopolita, estão os antídotos-chave contra o populismo.
P. Em Paris e na Europa ainda há uma classe média importante. Em outros países, na América do Norte e do Sul, essa classe média está se reduzindo.
R. São situações distintas: as cidades europeias não foram construídas de forma igual às do continente americano. Os centros urbanos na Europa são centros onde as pessoas querem viver. As cidades europeias são cidades que têm no máximo três milhões de habitantes, cidades pequenas se comparadas com as maiores do mundo. Na América se produziu outro fenômeno: as pessoas com recursos preferiram sair do núcleo da cidade para se instalarem fora, e os centros urbanos ficaram dedicados em grande parte à atividade econômica. O modelo europeu é o bom. Embora seja grande, guarda uma dimensão humana e permite reter a classe média, que é a que trabalha para o funcionamento da cidade. O problema na Europa é que, se não forem tentadas políticas voluntaristas, o mercado imobiliário pode acabar com esta classe média que não conseguirá mais viver no centro das nossas cidades.
P. Então rumamos para o modelo americano?
R. Pode ser. Veja Londres. É um modelo liberal, embora os prefeitos antes do Boris Johnson fossem de esquerda, como Ken Livingstone. Mas chegou Boris Johnson. Conheci-o muito bem, é muito simpático, trabalhamos muito bem juntos, mas não tinha uma política pública para conservar a classe média na cidade. Hoje em dia, Sadiq Khan, o novo prefeito, tenta uma nova política, inclusiva. Em Paris, eu agora, e antes Bertrand Delanoë, sabíamos que tínhamos que investir muito em moradia pública, porque é a oportunidade para manter a classe média em Paris. Hoje temos aqui 20% de moradias sociais. A maioria está destinada à classe média. São mais de 450.000 pessoas que residem em moradias acessíveis. E menos mal que fizemos isso, porque, se não, teríamos ficado sob a pressão de uma especulação imobiliária tremenda. E teria acontecido conosco o que aconteceu em Londres: que as pessoas que vivem do seu trabalho não conseguem ficar no centro, porque a moradia é cara, e precisam ir para longe. Não digo que tenhamos cumprido nosso plano completamente na hora de manter toda a classe média: é uma batalha importante, e são orçamentos importantes.
P. Falemos de Paris. Chama a atenção para alguém que acaba de chegar à cidade a dureza das críticas que você recebe. Como consegue irritar tanta gente?
R. É preciso levar em conta como as polêmicas se organizam hoje em dia, especialmente através de grupos muito organizados nas redes sociais, que vêm mais da extrema direita, que vêm da oposição de direita e de outras, de lobbies industriais também. Mas eu sou uma prefeita muito feliz. Quando vou para a rua, e vou todos os dias – venho trabalhar de metrô –, converso com as pessoas. Temos milhares e milhares de projetos, e estas críticas não procedem de quem vive na cidade. Certamente, o fato de a esquerda ter perdido bastante terreno e de que o Partido Socialista esteja no chão depois da eleição presidencial, que eu fique identificada como uma das figuras da esquerda e que, além disso, seja uma mulher sejam algumas das causas da virulência no debate público, mas não sou a única a recebê-la. Há uma histerização do debate público nas redes sociais, e jornalistas que aproveitam para tentar transformar essas polêmicas em realidades. Há quase dois mundos paralelos que de vez em quando coincidem, mas não muito.
P. Você tem tocado em temas sensíveis, como o do carro.
R. Ele é quase sagrado para muita gente… Não para os parisienses: para os lobbies. De fato, a maioria dos parisienses não tem carro hoje em dia.
P. As pessoas se queixam do trânsito…
R. No caso dos parisienses, só um em cada dez pega o seu carro diariamente para trabalhar. Só se fala deste um, e dos lobbies que apoiam esse um. Eu quero me interessar pelos nove que tomam o transporte público. E estes estão basicamente satisfeitos de que na cidade se possa respirar melhor do que antes, porque os picos de poluição do ar que tivemos foram violentos. Em Paris, 2.500 cidadãos morrem a cada ano por essa causa. Os lobbies viram como os prefeitos das grandes cidades – porque o que ocorre aqui acontece também em Seul, em Nova York, em Chicago, em Los Angeles – nos comprometemos na luta contra a poluição do ar, e os lobbies se organizaram para atacar os prefeitos e quem batalha para que se respire melhor.
P. Os lobbies, quais são? Os fabricantes de carros?
R. Há um lobby principalmente do diesel, muito influente. Viu-se isso depois do dieselgate, quando soubemos que tinham mentido aos consumidores, às autoridades nacionais e europeias. E estou convencida de que, infelizmente, as recentes revelações do The New York Times sobre o tema não serão as últimas. Este lobby é poderoso e organizado. As montadoras – não todas, e aqui trabalhamos muito com todas, as francesas e as internacionais – dizem que seu papel não é tanto fabricar carros, e sim propor mobilidade. E sabem que onde se está inventando a mobilidade e os mercados do futuro é nas nossas grandes cidades. Em uma metrópole como Paris, mais de 60% da população não têm carro, utiliza o transporte coletivo, o sistema de carros elétricos compartilhados, de bicicletas. É uma causa fundamental para o planeta: a da mudança climática e da qualidade do ar, a da saúde pública para que nossas crianças, as pessoas idosas e quem sofre de problemas respiratórios possam viver nas cidades sem se envenenar.
P. Há muita agitação e ruído nas redes sociais, como você mesma diz, mas não é só isso. Conversando com os parisienses, nota-se certa irritação com o estado das coisas…
R. Como sempre…
P. Queixam-se da sujeira, ou agora dos ratos, por exemplo…
R. Bom, o EL PAÍS é um jornal muito importante, e também pode subir a um nível mais importante.
P. Mas é importante refletir as inquietações…
R. Sim, e eu respondo perante as pessoas. Por exemplo, o tema dos ratos existe em todas as cidades europeias, porque os produtos que eram utilizados antes para lutar contra eles foram proibidos. Agora toda a Europa reflete sobre quais são as novas modalidades para esta luta. Esse assunto dos ratos, quem o promove? Você olhou nas redes sociais?
P. Quem o promove?
R. A extrema direita. Por quê? Porque é muito viral. Quantos cliques você vai ter falando de ratos? Milhares e milhares e milhares. Qual é a realidade? Cada prefeito tem que trabalhar e propor aos cidadãos uma possibilidade de viver bem em uma cidade limpa, onde não haja problemas. Mas falar unicamente disto, como que dizendo que é o tema sobre o qual os parisienses estão inquietos…?
P. Não falamos unicamente deste tema.
R. É um pouco estranho, um pouco estranho.
P. Outro assunto polêmico: a Prefeitura de Paris acolheu uma exposição em homenagem ao Che Guevara, de quem você disse que era “um ícone romântico”. Recebeu muitas críticas. Dissidentes cubanos…
R. Não vou nem comentar.
P. De acordo. Poderia me dizer uma virtude e um defeito do presidente Macron?
R. Não, tampouco. Eu não sou uma comentarista da vida política e das capacidades de fulano ou sicrano.
P. Paris compete para atrair sedes de organizações depois do Brexit.
R. Sim, e estamos ganhando. Por exemplo, ganhamos a presença da Agência Bancária Europeia, trabalhamos com o Estado para impulsionar o atrativo de Paris. Vêm empresas muito grandes. O Google anunciou que escolhe Paris para a inteligência artificial. Paris está ganhando com uma equipe que propôs os temas da ecologia, do humanismo, da inovação e do social como objetivos mais importantes, que mobilizam a nós e aos parisienses.
P. O Partido Socialista francês está em risco de desaparecimento?
R. Ele tem que sair desta, como o Partido Socialista Espanhol. O debate sobre a fragilidade da democracia teria que ser mais compartilhado pelo mundo do jornalismo. Vi um filme extraordinário, The Post – A Guerra Secreta. E saí com nostalgia de uma imprensa investigativa, uma imprensa que tenha seu papel, o papel do quarto poder em uma democracia.
P. O papel de contrapoder.
R. Não contrapoder: quarto poder. Assim a imprensa é chamada aqui: o quarto poder. Saí com nostalgia de que entre todos os que têm a ver com a permanência da democracia – sejam os políticos, os cidadãos, os atores econômicos e associações, e a imprensa – não se compartilhe a ideia de que há algo muito, muito frágil, e que a democracia está em perigo.
P. Gostaria de ser presidenta?
R. Sou prefeita de Paris.
(El País, 24/02/2018)