14 jul Prefeitura de Florianópolis anuncia processo para demolição de 23 imóveis na Lagoa da Conceição
Henry Cromack, 40, ainda se lembra de quando corria com as demais crianças do bairro para as peladinhas com golzinhos fechados em traves improvisadas com sandálias de dedo na rua Henrique Veras do Nascimento, em frente ao restaurante do pai, ao lado da verdureira do Chico e do restaurante da família Oliveira, conjunto que formava o primeiro setor comercial da Lagoa da Conceição na década de 1980. “Daqui, a gente via o morro. Quando vinha um carro lá em cima, todos corriam para esperar a clientela na frente das lojinhas”, conta.
O menino cresceu e viu a Lagoa se transformar. A pequena freguesia dos nativos virou ponto turístico internacional, e o número de construções rente ao espelho d’água se multiplicou vertiginosamente nas duas últimas décadas. O boom imobiliário cercou a lagoa, moradores criaram praias particulares, e o esgoto – aliado ao avanço da degradação urbana – acelerou a poluição das águas.
Estima-se que pelo menos mil imóveis estejam na faixa dos 30 metros da margem da Lagoa da Conceição, em áreas consideradas de preservação permanente pelas legislações ambientais. A Justiça cobra levantamento desses imóveis e a demolição daqueles que não comprovarem a ocupação.
A determinação de derrubada é fruto da ação civil pública movida em 2003 pelo Ministério Público Federal. Em 2005, com base no Código de Águas, sentença da Vara Ambiental da Justiça Federal determinou a proibição de construções às margens da lagoa. Em 2010, quando o processo transitou em julgado, cobrou o atendimento imediato às legislações sobre a faixa de proteção ambiental de 30 metros e abertura de acessos públicos à orla. No ano passado, a Justiça voltou a cobrar o cumprimento da decisão sob o risco de o município arcar com multa milionária.
No último dia 7, a juíza federal Marjorie Cristina Freiberger Ribeiro da Silva, da 6a Vara Federal de Florianópolis [Ambiental], abriu prazo de 30 dias para que o município apresente o levantamento e os encaminhamentos dos imóveis no chamado “setor dois” da orla – da Servidão das Palmeiras Nativas até a rua Recanto das Garças. Segundo a Procuradoria-Geral do Município, serão 23 ações demolitórias de imóveis, muitos erguidos depois de 2005, quando a Justiça reconheceu na primeira decisão liminar os limites de preservação. Na decisão, que é fruto do acordado em audiência pública desde agosto de 2014, a juíza também cobra abertura de acessos a cada 125 metros.
Nas últimas semanas, comerciantes da região do entorno da Lagoa viraram alvos de outra ação, e 17 estabelecimentos foram fechados por falta de alvará. “É uma injustiça. Querem nos impedir de trabalhar com esta ação para demolição. A maioria do comércio de Florianópolis não tem alvará”, argumenta Fernando Mauri Spindler, 40, do tradicional Querubim, bar e restaurante inaugurado em 1998.
Segundo os comerciantes, a cobrança dos alvarás tem ligação com a ação do MPF, já que sem alvarás e sem poderem abrir as portas, os comerciantes ficariam mais suscetíveis à demolição. Segundo o procurador-geral do município, Alessandro Abreu, uma das comprovações que o município tem que fazer à Justiça é a apresentação dos alvarás e sua validade, assim como a autorização das construções. “Estamos cumprindo as determinações da Justiça acordadas em audiência”, diz Abreu. O procurador argumenta que entre as 23 ações demolitórias estão construções ilegais, sem autorização do município, a maioria depois de 2005.
Ação amparada por diferentes legislações
A polêmica coloca os ocupantes da orla em uma verdadeira batalha. As ações demolitórias na Lagoa da Conceição serão individuais, e cada caso será analisado separadamente. A Justiça cobra, nada mais nada menos, do que cumprimento do Código Florestal (Lei 4.771/65), da Política Nacional dos Recursos Hídricos (Lei 9.433/97), da Resolução do Conama 303/2002, do Código de Águas (Decreto 24.643/1934) e do Plano Diretor dos Balneários. As legislações definem limites para a ocupação em torno do recurso hídrico, com o fim de preservar o meio ambiente.
Por outro lado, moradores mais antigos temem ver ir ao chão a história da própria “lagoa formosa” – como é lembrada no hino da cidade –, duvidando da demolição maciça das construções suntuosas nos recantos mais reservados ao redor dos 19,71 km2 de espelho d’água.
O “Morro das Sete Voltas”, como diziam os mais velhos, não é mais visível do ponto onde Cromack hoje administra o Koze Hostel, um dos oito estabelecimentos no Boulevard, prédio que o pai começou a erguer em 1972 e se tornou comercial em 1985. “Aqui, nasceu o comércio da Lagoa da Conceição, e agora querem tirar quem criou isso tudo daqui. É uma injustiça o que estão fazendo com a gente”, rebate Henry Cromack. Ele afirma que na época, a obra teve aprovação da Prefeitura de Florianópolis, com autorização para a construção de 180 metros quadrados. Desolado, ainda aposta em reviravolta na Justiça por considerar a “ocupação consolidada”.
Liminares mantêm parte do comércio
Pelo menos quatro dos oito comerciantes do Boulevard conquistaram liminares na Justiça estadual impedindo a demolição e suspensão das atividades. No caso do Restaurante Oliveira, o juiz Hélio do Valle Pereira, da Vara da Fazenda Pública, reconhece que a construção tem registro desde 1970. “Seria um despropósito que se admitisse a demolição sem que se avaliem esses aspectos todos”, diz a liminar, que ainda deve passar pelo julgamento de mérito.
Outros quatro comerciantes conseguiram liminares que impedem a suspensão das atividades até o fim do julgamento das ações demolitórias, com o argumento de que famílias dependem das atividades para sustento. Outros comerciantes do mesmo prédio, como os donos do Querubim, não conseguiram a mesma decisão favorável.
O procurador Alessandro Abreu não descarta um acordo para resolver o impasse e impedir demolições em áreas consolidadas. “A prefeitura não tem condições de fazer qualquer composição de acordo na esfera administrativa, mas acreditamos que isso possa ser possível na Justiça estadual. Não temos oposição de realizar um acordo para resolver a questão, desde que seja feito no processo, com anuência da Justiça”, afirma.
Construções nunca cessaram
Nos últimos dez anos, pelo menos 62 imóveis foram erguidos ilegalmente no entorno da Lagoa da Conceição, segundo a própria Prefeitura de Florianópolis. Em 2005 a Justiça já determinava, em decisão liminar, a área de preservação dos 30 metros e o alerta para impedir, e até demolir, novas construções.
Mesmo assim imóveis foram erguidos sob uma falta de fiscalização histórica, que permitiu a formação de paredões de casas, onde trapiches e praias particulares tornam a lagoa exclusividade para poucos. Apesar da ação aberta em 2003 ter sido concluída em 2010, nenhum levantamento sobre a área ocupada na faixa dos 30 metros, autuação ou fiscalização foi feita, permitindo que construções clandestinas continuassem a ser erguidas até 2014, quando o Ministério Público Federal voltou a se manifestar cobrando a decisão judicial.
Envolto por essências indianas, imagens sagradas e artesanatos locais que ressaltam, sobretudo, a cultura açoriana, Francisco Brasiliense, 46, concorda que se a área é de preservação tem que ser desocupada. O dono da loja de artesanatos e artigos de decoração, há 15 anos no mesmo ponto do centrinho da Lagoa, diz que a situação se agravou ao longo dos anos devido ao completo descaso do poder público. “Isso aqui é área da União, não sou contra [as demolições] desde que a lei seja cumprida e valha para todos, incluindo as mansões”, diz. “Não existe outro lugar pra ir na lagoa além do centrinho, na minha opinião o poder público deveria interferir e realocar os comerciantes em outro ponto, criar uma alternativa, acho que essa seria a melhor solução”, emendou.
A notícia de que mais de mil imóveis na faixa de proteção ambiental seriam alvos de ações demolitórias alarmou a comunidade no entorno da lagoa. Em julho de 2014, a Justiça Federal cobrou o cumprimento da decisão e em agosto, durante audiência pública na Justiça Federal, ficou determinado que o levantamento fosse feito em setores, começando pelo centrinho, assim como também a apresentação do projeto para abertura dos acessos à orla. Na época, segundo o MPF (Ministério Público Federal), a medida foi necessária diante do descaso com a decisão de 2010, que continuava permitindo novas construções em área de proteção.
Agora, conforme determina a Justiça, o município é obrigado a “considerar, como área de preservação permanente, todas as áreas estabelecidas como área verde de lazer ou residenciais/turísticas/comerciais, na faixa de 30 metros a contar da margem da Lagoa, e, em consequência, considerar tais áreas como não edificáveis, a fim de observar a legislação ambiental de proteção do entorno das lagoas”, como diz trecho da decisão.
(Notícias do Dia Online, 13/07/2015)