27 jul Bendito mar de lama
(Por ClicRBS, 27/07/2015)
Arrastando lama e silêncio, os cinco mangues da Ilha de Santa Catarina resistem como um berçário de vida invisível na paisagem da Capital. Lembrado de tempos em tempos, quando se torna rota de fuga para criminosos ou labirinto para crianças perdidas, o mangue é mais do que exibem suas gengivas negras durante os ciclos de maré baixa. Entre raízes suspensas e subterrâneas, pulsa um reduto da biodiversidade catarinense. A área total, estimada em 1.744 hectares abriga centenas de espécies de animais e plantas em um território que, no passado, teve o dobro do tamanho. Foi perdendo espaço para a construção civil, a ocupação irregular, a exploração predatória. Ainda assim, Florianópolis tem o segundo maior manguezal localizado em uma área central da cidade, atrás apenas de Recife (PE), segundo o Instituto Mangue Vivo. Neste 26 de julho, Dia Mundial de Proteção aos Manguezais, o Diário Catarinense apresenta o resultado de dois dias de viagem pelos rios Ratones, ao Norte, e Tavares, ao Sul, que encharcam manguezais da Ilha de Santa Catarina. Roteiro revelador das belezas e das agressões a essa imensurável fonte de vida para os bichos, para os homens, para o bicho-homem.
Segredos de água e lama
ascido da paixão de um lavrador por uma roceira que não conhecia o cheiro do mar. Assim veio ao mundo Aristides Avelino Raulino. Quando criança, deu os primeiros passos sobre as areias de Paulo Lopes. Adolescente, ensaiou braçadas na Baía Sul, em Florianópolis. A mudança de uma cidade para outra se deu pelas dificuldades financeiras dos pais. Hoje, aos 59 anos, “embucha” as palavras quando fala do chão onde crava os pés, que não é moldado em terra, como nos tempos da infância, nem feito de água, como nos primeiros mergulhos, mas de lodo, nascido do encontro da água doce do rio Tavares com o mar de água salgada da Baía Sul.
Aristides recebe o Diário Catarinense para um passeio no manguezal do rio Tavares em uma manhã plúmbea de inverno. Baruki, um barco de madeira colorido, espera solenemente a maré encher. São quase 10 horas quando se afasta do trapiche dos ranchos de pescadores, na Via Expressa Sul. Desliza ao ronco de motor com cheiro de óleo diesel em direção ao rio. Desmatamento, construções irregulares e lixo nas margens recebem o olhar de desaprovação de Aristides. O pescador artesanal é um dos que lutaram pela criação da Reserva Extrativista Costeira do Pirajubaé (Resex) e lastima a realidade das condições do ecossistema.
– Sinto uma dor no coração quando vejo isso. O mangue é nosso pulmão verde.
No barco em que segue a reportagem, duas servidoras do Instituto Chico Mendes, o ICMBio, escutam sugestões de fiscalização. Não só para quem trabalha dentro do mangue, mas também para os que vivem no seu entorno. Aristides pede também por mais conscientização:
– A pessoa joga o saquinho plástico e lixo no córrego, que com as chuvas ou maré alta vai para o rio e que se prende nas raízes do mangue.
O assoreamento do rio faz Aristides diminuir a velocidade do Baruki. O pescador coloca o remo na água para medir a profundidade. Em alguns lugares, são apenas dois palmos. Quando passa por baixo das obras na ponte Diomício Freitas, que leva para o aeroporto, uma estaca de madeira bate no fundo da embarcação:
– Fizeram o estaqueamento trancando o percurso da água e assumiram o compromisso de retirar as estacas. Mas estão assim, soltas, oferecendo perigo para quem navega – reclama.
Aristides é do tempo em que se matava robalo, caranha e tainhas sem malhar o peixe. Época em que acendia a pomboca (lampião), aproximava-se dos galhos das árvores para, em seguida, sacudi-las. Era só fazer boca de siri, ficar quieto, e esperar o cardume, assustado, pular para dentro da embarcação. Agora, é ele quem sente medo:
– A gente se apavora. Como o peixe irá viver em um rio poluído?
O pescador também se preocupa com o futuro da estação de tratamento de esgoto da Casan, na localidade de Cachoeira do Rio Tavares, no leito do riacho que atravessa o manguezal. A obra está embargada pelo Ministério Público por solicitação do ICMBio. O berbigão, espécie típica da Ilha e fonte de sustento para pelo menos cem famílias registradas na Resex, tem futuro incerto depois de alteração da qualidade das águas. Chuva em excesso e derramamento de um produto químico na região são apontados pela comunidade como causa do que chamam “desastre”.
Baruki avança além-rio. A proa azul rasga as águas escuras. O terreno lodoso abriga pneus, garrafas e sacolas de plástico. Um inusitado colchão se espreguiça sobre galhos da vegetação. Peixes não pulam. Uma ou outra garça dá rasantes. Vez que outra aparecem caranguejos avermelhados.
– Nesta época do ano, eles se escondem. Só saem com trovão, pois aí a terra treme. Conta o pescador
A andada – período reprodutivo do crustáceo – é no verão. Aristides desliga o motor. Pula para a margem e mostra a quantidade de tocas na terra inundada. Ele não tem o hábito de pegar caranguejo. Mas usa do saber tradicional para enfiar a mão, catar um exemplar, identificar o sexo. Feito isso, devolve o crustáceo à morada.
Meio da tarde e a chuva começa. Aristides diz que a água que cai do céu faz uma faxina no mangue. Uma hora depois, em terra firme, faz lembrar o que escreve o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto a respeito do rio Capiberibe.
“Na gente que regressa sente-se cheiro de mar”.
MANGUEZAL DE RATONES*
Estação Ecológica de Carijós
Além dos mangues, abrange restinga, rios e banhados. Sofreu grande redução: hoje tem apenas 50% da área original. Foram feitas dragagens para obras de saneamento e construção de rodovias . É cortado pela SC-401. A Esec Carijós abriga a porção oeste da rodovia SC-402, entre esta e a Baía Norte. O restante do manguezal conta apenas
Estação Ecológica de Carijós
Todo o manguezal situado entre a rodovia SC-401 e o mar, formando uma área contínua recoberta por densa vegetação. Estima-se que preserve cerca de 70% do tamanho original. Sofre com os aterros ilegais ao longo da SC-401. Recebe esgotos sem tratamento nos bairros Monte Verde e João Paulo.
MANGUEZAL DO ITACORUBI
Por força do Código Florestal é APP e corresponde ao Parque Municipal do Itacorubi, administrado pela Fundação do Meio Ambiente (Floram). Está localizado no bairro que leva o mesmo nome, a área urbana que mais cresceu na última década em Florianópolis. Por isso, sofre os reflexos de aterramentos para construções, esgotos e liberação de metais pesados do cemitério. Sofreu sucessivas reduções para dar espaço à Avenida Beira-Mar Norte, ao aterro sanitário e Santa Mônica.
MANGUEZAL DO RIO TAVARES*
Reserva Extrativista do Pirajubaé
Foi criada por mobilização da comunidade para conservar o estuário do rio Tavares. Localiza-se no bairro Carianos, uma das áreas aterradas e, na porção leste e sul, perdeu território para ceder lugar às pastagens.
MANGUEZAL DA TAPERA
Sofre redução de área em função da drenagem para a construção de moradias. É o único na Ilha que não constitui uma unidade de conservação, protegido apenas pelo Código Florestal e pelo Plano Diretor do Município. Enfrenta o crescimento das ocupações de baixa renda nas proximidades, além da fragmentação causada pela rodovia Açoriana e pela rodovia Baldicero Filomeno. Além disso, parte da vegetação de manguezal é removida para dar lugar a pastagens.
Reserva do Pirajubaé guarda mangue, mas entorno precisa de cuidados
Laci Santini é analista ambiental do ICMbio e atua na Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé, Sul da Ilha. A Resex tem a finalidade de resguardar a maior área de mangue de Florianópolis. Criada em 1992, a unidade surgiu por causa da população tradicional, assentada sobre os recursos do estuário, e dependente do mangue.
– Os mais antigos valorizam muito a reserva, pois sabem da importância do ecossistema para a preservação das espécies. Porém, também são bastante críticos aos processos do crescimento vertiginoso da cidade– observa.
Trata-se de uma população pequena formada por cerca de 100 famílias, que, assim como o mangue, é invisível para grande parte da cidade. Muitos são extrativistas, especialmente de berbigão, e empenhados para que seus saberes tradicionais não sejam aniquilados pelo crescimento urbano. Para Laci, o mangue permanece “longe dos olhos” das pessoas por ser uma área de banhado, com mal cheiro, tomada por vários detritos.
– Quando se navega pelo rio, percebe-se que os moradores não respeitam o próprio quintal.
Ela acredita que muitas pessoas olham para o mangue como área inútil, que merece ser aterrada e ocupada. Ciente de que existem problemas, a analista ambiental acredita que se não fosse a demarcação da unidade de conservação, a realidade estaria bem pior do que está:
– Palmo a palmo, metro a metro vão ganhando espaço sobre o mangue.
Há dois meses Dayane Guero trabalha na Resex do Pirajubaé. Antes, acumulou experiência nas unidades da Chapada dos Guimarães e do Pantanal, ambas no Mato Grosso. Acha que áreas inundáveis têm muita semelhança entre si, especialmente, na luta pelo ordenamento do território pesqueiro – sobre os quais são necessários processos de conscientização da população.
– Penso que não se trata apenas de fiscalizar e coibir atividades predatórias. É preciso trabalhar o sentimento de pertencimento das pessoas em relação ao mangue – sugere.
Dayane acredita que, no meio ambiente, não existe território “fora”, “além” do lugar onde a pessoa mora, visita, está de passagem. Por isso, quando o cidadão entender que ocupar o mangue ou aterrar sua área é tão prejudicial quanto jogar lixo no rio, a realidade poderá mudar. Ela defende que a invisibilidade do manguezal é influenciada, em parte, pelo desconhecimento das pessoas sobre esses ecossistemas. Se isso mudasse, talvez se compreenderia melhor o serviço ecológico que prestam à natureza.
– É preciso retirar esses fantasmas que habitam a gente, nascido de um imaginário infantil de areias movediças, de lugar onde habitam monstros.
Itacorubi, na divisa entre dois mundos
O mangue do Itacorubi é mais do que um local de transição entre a terra e o mar. Também está entre a beira-mar e a lagoa, entre a vida que vibra na cidade e a morte que repousa depois da Avenida da Saudade. Permeia silêncios e barulho de carros. Vez que outra, libera um odor característico desses ecossistemas. Como resultado da ação das bactérias atuando na matéria em decomposição, gera um gás a base de enxofre,que lembra o cheiro de ovo podre.
Só assim as pessoas lembram que o mangue existe, sugere Paulo Douglas Pereira, que representa o Instituto Mangue Vivo. Anos atrás, a ONG teve participação ativa nas discussões relacionadas ao ecossistema e, hoje, trabalha em consultorias ambientais em outros estados. Pereira conta que estudos apontam a perda do manguezal do Itacorubi em 50% em relação à área ocupada em 1938.
Do alto do Morro da Cruz é possível se observar a vegetação cercada por construções. Um pequeno curso d’àgua, nascido do encontro dos rios do Sertão e Três Córregos, deságua na Baía Norte. Na bacia do Itacorubi, a poluição nem sempre é visível, mas esgotos sanitários que não estão ligados à rede coletora comprometem o ecossistema. Existem ameaças mais antigas, como as alterações no curso da água do mar para a construção da rodovia, o cemitério do Itacorubi – que não possui sistema de drenagem para impedir contaminação pela decomposição dos corpos –, e o antigo lixão da cidade que, embora esteja desativado há 30 anos, libera metais pesados.
A professora Marinez Scherer, coordenadora do Curso de Oceanografia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), diz que a instituição não faz diagnóstico no sentido de análises de água, de sedimento ou de contaminação dos manguezais de Florianópolis, mas realiza trabalhos sobre esses ambientes e seus serviços ecossistêmicos. Segundo ela, trabalhos do Laboratório de Gestão Costeira Integrada da UFSC apontam vetores de impactos e alterações dos manguezais da cidade, como a infraestrutura e as construções urbanas. Esses fatores levam à perda da área e ao isolamento de porções desses territórios, além de provocar a contaminação das águas por esgotos e resíduos sólidos.
Do ponto de vista legal existem outros problemas. O terreno no Itacorubi é de propriedade da União e foi cedido à UFSC em 1969. Sem ter construído na área os centros de pesquisa e ensino, a universidade fez um acordo com a prefeitura que, em 2002, criou por Decreto, o Parque Municipal do Manguezal do Itacorubi. Mais recentemente, surgiu a proposta de uma gestão compartilhada, que incluiria o Instituto Chico Mendes, mas o fato de o parque estar fora dos limites de uma unidade de conservação dificulta a aceitação do plano. Quando há problemas ou a necessidade de ações fiscalizadoras ao meio ambiente, órgãos do município atuam, se solicitados. No entanto, parece que a medida de proteção ao mangue é só o esforço solitário de alguns usuários conscientes da importância do ecossistema.
No mangue do Itacorubi se encontram espécies como mangue-preto, mangue-vermelho, mangue-branco, capim-praturá (marisma), algodoeiro da praia e o avencão do mangue. A fauna também é rica, com caranguejos arborícola, do rio e chama-maré. Há, ainda, o siri azul e o gatanhão. As aves mais comuns são o maçarico de coleira, socó, martim-pescador, quero-quero. Essa diversidade pode ser apreciada das Passarelas das Garças, primeiro passo para a implantação do Parque do Manguezal do Itacorubi, na confluência dos rios Itacorubi e Sertão, junto à Avenida da Saudade.
Carijós, de plantas carnívoras a jacaré-de-papo-amarelo
Antes da água do rio, o asfalto da rodovia. Assim são os primeiros passos da viagem do Diário Catarinense pelo mangue de Ratones. Momentos antes de acessar o maior manancial da Ilha de Santa Catarina, o barco de metal deixa a sede da Estação Ecológica Carijós (Esec-ICMBio) para descer sob a ponte com comportas, na SC-402. A Esec Carijós surgiu para proteção do ecossistema manguezal, destinando-se à realização de pesquisas básicas ou aplicadas, à proteção do ambiente natural e ao desenvolvimento da educação ambiental.
Com o motor da embarcação em velocidade baixa, Sílvio de Souza Junior, chefe da Unidade de Conservação, fala sobre as visitas agendadas. Já a caminho do mangue, explica, a curiosidade dos alunos é aguçada com a presença de plantas carnívoras. Os pequenos vegetais que capturam insetos para comer vivem no brejo, solo pobre e encharcado. Saber que surgiram há 65 milhões de anos, na época dos dinossauros, arrepia os alunos. Assim como a observação do jacaré de papo-amarelo, bastante comum nos rios da estação e planície do Rio Ratones. Aos poucos, aprendem a simbiose do mangue: o caranguejo é vermelho por que come a folha do mangue-vermelho, rico em taninos.
Toda semana, servidores do Instituto Chico Mendes fazem o mesmo trajeto, até a desembocadura do rio, como atividade de fiscalização. Com 10 quilômetros de extensão, o Rio Ratones é o maior da Ilha de Santa Catarina. A bacia também é formada pelo Veríssimo, Palha e Papaquara. A embarcação avança e o cenário se abre. O barulho dos motores na rodovia dá lugar ao canto das aves.
O mangue perdeu espaço por causa das intervenções humanas. Em 1938, o manguezal de Ratones tinha uma área de 16,57 quilômetros quadrados. Em 1981, passou para 6,25 quilômetros quadrados. Estima-se que 40% de toda área tenha sido aterrada. Mesmo assim, é o mais preservado de Florianópolis, consequência da fiscalização e atividades de conscientização, inclusive com pescadores que atuam no entorno da reserva.
Não à toa, a unidade é a que mais apreende redes no país: só neste ano, mais de seis quilômetros de extensão. Na área externa, existem cardumes de parati, bagre, robalo. Um banco de areia serve aos pássaros. O que o português batizou de croa, referindo-se à parte baixa da “coroa”, acolhe as espécies em busca de alimentos. O barco atraca no Poço das Pedras, uma referência histórica do rio, que se constitui na parte mais profunda e com cerca de seis metros. Os peixes pulam. São filhotes de parati.
A viagem segue por um dos muitos canais que levam para dentro do mangue. É preciso cuidar os galhos e raízes aéreas. Mas é no final do percurso que a natureza resguarda uma das cenas mais ricas: as borbulhas produzidas pelo acalamento dos peixes.
Dia de Bênção à Terra
O Dia Mundial de Proteção aos Manguezais foi escolhido para homenagear Hayhow Daniel Nanoto, um ativista que morreu em 1998 enquanto participava de um protesto com o Greenpeace Internacional. A data impulsionou movimentos socioambientais na luta pela conscientização sobre o valor dos mangues. O 26 de julho também tem uma referência espiritual. Para os seguidores do candomblé e da umbanda, neste domingo celebra-se Nanã, entidade considerada senhora da sabedoria.
No sincretismo, ela é Santa Ana, a avó de Jesus menino, mãe de Nossa Senhora. Nã, como também é reconhecida, é divindade dos primórdios da criação, associada à lama, à água e à morte, e recebe no seu seio os mortos. Vinculada à terra, em alguns mitos Nanã cria o Planeta, a quem embalou nos braços. Em transe, esfrega suas mãos na terra molhada e pelo gestual diz que ela lhe pertence por direito.
Esse poder criador de Nanã é simbolizado através de seu habitat natural, mangues, pântanos, charcos. Terra mais água formam um subproduto, a lama. Desta lama, essência de Nanã, Oxalá cria os homens. É de Nanã, a grande Mãe Terra, que surgimos, nos alimentamos e a ela retornaremos para que possamos um dia renascer.
Nanã e mangue; mangue e Nanã. Transformação.