Especialista diz que método de demarcação para áreas de marinha é equivocado

Especialista diz que método de demarcação para áreas de marinha é equivocado

O pernambucano Obéde Pereira de Lima, 77 anos, é um dos maiores especialistas do país quando se fala em terrenos de marinha. Ex-oficial da Marinha do Brasil, Lima formou-se como engenheiro cartógrafo e, há mais de 30 anos, estuda as questões que dizem respeito à demarcação e aos estudos que envolvem os terrenos de marinha no Brasil. Sua tese de doutorado em engenharia civil pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), publicada em 2002, apresentou uma forma científica de calcular a linha preamar de 1831, o que o levou a concluir que, por conta do avanço das marés ao longo de mais de 180 anos, os terrenos de marinha estão hoje, na verdade, sobre mares e praias. Nesta entrevista, ele contesta o método presumido de demarcação da linha utilizados pela SPU (Secretaria do Patrimônio da União), que ele considera “equivocado, impróprio, inadmissível e ilegal”.

 

Qual é a definição de terrenos de marinha?

É uma faixa com profundidade de 33 metros contada para o lado de terra a partir da preamar média de 1831. Esse é o grande mistério: o ano da referência de medição. Como está referida a 1831 e a SPU nunca soube como calcular isso, foi uma provocação que eu recebi em 2000 quando fazia doutorado para fazer uma tese focando exatamente em uma metodologia que possibilitaria um retrospecto a 1831 para identificar esta linha. Em 2002 defendi a tese publicamente com intenção de ajudar a SPU na solução dos terrenos de marinha. Conclui que os terrenos nos dias atuais devem estar submersos nas praias ou, quando muito, uma parte deles está sobre a praia. Praias são bens públicos e os terrenos recaem sobre elas, que são bens dominiciais da União, mas de uso comum do povo. Apresentei a tese à SPU em Santa Catarina e uma cópia foi para Brasília, que foi engavetada, pois não atendia aos interesses arrecadatórios deles. O que eles fazem são métodos presumidos de identificação da linha preamar, que acabam invadindo as propriedades particulares. A SPU declarando estes como sendo bens da União, os proprietários se quiserem utilizá-los deverão requerer a concessão de ocupação ou de aforamento. Com a ocupação, a SPU passa a cobrar as taxas, como o laudêmio. O problema também é que pagando estas taxas não se tem retorno nenhum para a sociedade.

As leis atuais (especialmente o decreto-lei 9.760/1946) asseguram os terrenos de marinha como bens da União, e que é dever da SPU identificar, demarcar, cadastrar, registrar e fiscalizar os bens imóveis da União.

Os terrenos de marinha são estabelecidos desde o Brasil colonial, mas a lei de 1946 conceituou os terrenos de marinha. É inquestionável dizer que não existe terreno de marinha, ele existe. A Constituição de 1988 recepcionou essa conceituação estabelecida nesse decreto-lei de 1946, então hoje consta que terrenos de marinha e acrescidos são bens da União. Os terrenos e acrescidos estão sobre a praia, não deixam de existir, estão definidos na Constituição, mas a eficácia dessas faixas territoriais é que perderam o sentido. Eles podem ser concedidos por forma de ocupação ou aforamento. Mas, como eles recaem sobre as praias, não poderiam ser concedidos por serem considerados como de uso dominical da União, pois estão sobre faixa de uso do bem comum do povo. A SPU utiliza um método presumido (para a demarcada da linha preamar) que considero equivocado, impróprio, inadmissível e ilegal. Ao invés de obedecer o que está escrito na lei a partir da linha preamar média, ela criou critérios absurdos.

Então, na prática, a SPU não tem a demarcação correta da linha preamar de 1831?

Eles utilizam a prerrogativa da legitimidade da presunção ao presumir que a média das preamares máximas de um ano corresponde à média real. Depois de publicada a demarcação em edital, quem quiser entrar com recurso contra a SPU, ela vai dizer que o ato administrativo está perfeito e acabado. Mas ao fazer a média das máximas e dizer que isso corresponde à linha da preamar média, a SPU está contrariando frontalmente a lei. Provei que é possível calcular as marés de 1831 segundo fórmulas matemáticas. Provo que a SPU comete ilegalidades avançando sobre as propriedades. Na metodologia técnico-científica que desenvolvi, os terrenos de marinha caem sobre as praias da costa do Brasil inteiro. Os terrenos de marinha só existem no Brasil, é um instituto muito singular. Nunca existiu com essa denominação em outro local. Em Portugal, por exemplo, tem faixa de restrição, que é uma faixa de 100 metros de um terreno marginal, considerado uma faixa de segurança da qual eles recomendam que não sejam feitas construções. Se alguém desobedecer e construir nessa faixa, caso venha a acontecer uma tempestade e afetar o imóvel, ele não tem como responsabilizar o país pelo dano.

Hoje ainda faz sentido se cobrar por esses terrenos?

Já participei de cinco audiências públicas na Câmara dos Deputados. Está no Senado a PEC 53, do senador Ricardo Ferraço. Fui até o Senado e provei que está tudo errado e ilegal. Agora aguardamos o senador Renan Calheiros colocar em votação, mas os aliados do governo não querem que entre em votação por que seria a extinção dos terrenos, seria uma grande perda para a União.

Com o avanço das marés sobre os continentes é possível que grande parte dos terrenos de marinha já não existam mais por serem tomados pelo mar?

Fiz estudo de caso em São Francisco do Sul e estou atuando como consultor técnico nessas questões. De modo geral onde, fiz perícias que constatam que os terrenos estão sobre as praias. Em Florianópolis, por exemplo, questões como a dos beach clubs (em Jurerê Internacional), segundo laudo não estão sobre terrenos de marinha, mas a SPU e os órgãos ambientais insistem em dizer que estão em terreno de marinha e APP. Ficam criando obstáculos para destruir os postos de praia, enquanto que no laudo pericial prova que os beach clubs não estão em terreno de marinha.

Em Pernambuco, sua tese de doutorado foi usada para frear a cobrança das taxas de terrenos de marinha?

O procurador da República daquele Estado, usando minha tese, moveu uma ação civil pública contra a SPU. A Justiça aceitou e sentenciou a SPU determinando a anulação de todas as demarcações feitas. Caso tenha interesse em retomar as cobranças, eles devem fazer utilizando a metodologia científica correta. Então em Pernambuco estão suspensos os pagamentos de taxas de ocupações e laudêmios. Caso queira retomar as cobranças, a SPU só poderá fazer a partir de um novo estudo por este método. Mas a SPU ainda tem como recorrer, a sentença foi liminar e o mérito não foi julgado.

PERFIL

Engenheiro cartógrafo pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), mestre em engenharia civil pela UFSC e doutor em engenharia civil pela UFSC, quando defendeu a tese “Localização geodésica da linha preamar média de 1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e de seus acrescidos”, em 2002.

Professor aposentado do quadro permanente do magistério superior, do Ministério da Educação e dos Desportos. Foi professor da URGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) de 1989 a 2007, em áreas como cartografia, geografia e astronomia geral.

Atua como consultor de perícias técnicas em questão de terrenos de marinha e seus acrescidos.

(Notícias do Dia Online, 04/05/2015)