28 abr Comunidade da Costa da Lagoa, em Florianópolis, é destaque em longevidade
O dia começa cedo na Costa da Lagoa. Antes das 5h da manhã, a aposentada Benta Felicidade Laureano dos Santos, 97, já está debruçada na janela da pequena casa de alvenaria onde sempre morou, e, em silêncio, observa a passagem da primeira barca que leva trabalhadores à cidade para ela ainda desconhecia. Não escuta a falação de pescadores madrugadores, nem o cantarolar de galos e da passarada, e só espera o sol “brotar” na imensidão do Leste até iluminar de vez passos e remadas de quem amanhece na lida.
Para o vizinho Ilton Sebastião dos Santos, 54, o cheiro de café bem novo e peixe assado na brasa é como despertador. É o começo de mais um dia de pescaria incerta em meio ao vaivém do bote cadastrado na Coopercosta, a cooperativa de barqueiros com ponto no trapiche do Terminal Lacustre Luiz d’Acâmpora, no Rio Vermelho. “Os mais velhos reforçam o café da manhã com peixe e farinha de mandioca”, diz.
No almoço e na janta, no prato de Benta não pode faltar feijão em caldo ou com a sustança do pirão escaldado, esclarece a filha Nilzete, 56, que também enxerga cada vez menos e foi obrigada a deixar de lado os bilros com a almofada de trançar rendas. “Ela não gosta de frutas, só de laranja, mas sabe que verduras são importantes para a saúde”, diz a caçula, que também pouco conhece além das prainhas contornadas pela trilha acidentada do lugar.
Mãe de 11 filhos – sete homens e quatro mulheres – as mãos da parteira Benta também ajudaram a dar à luz muitas crianças da Costa. E, apesar de franzina, trabalhou na roça, colheu e torrou café, ajudou na pesca, picou renda e aprendeu a manusear a máquina de costura. Para dar de comer à filharada, manteve a todos por perto, mesmo na ausência do marido, Manoel Hermínio dos Santos, que a cada ano saía para pescar em Rio Grande/RS, e lá ficava de maio a dezembro. “Na volta, ele comprava carne verde. Só se comia carne no Natal e no Ano Novo”, conta.
Sem benzedeiras, socorro chega pelo ar
Hoje, o Arcanjo, helicóptero ambulância do Corpo de Bombeiros, é aliado importante nos casos mais graves. “Acionamos sempre que é inviável o transporte de barco até o centrinho da Lagoa”, explica a técnica de enfermagem Gisela dos Santos, 33, atendente do posto de saúde da comunidade, que, “quando bate o desespero”, também recorre às benzedeiras do lugar.
Historicamente, pressão arterial e diabetes são as principais causas de consultas de idosos ao médico. Mulheres entre 50 e 60 anos, que segundo Gisela trabalham em casa e têm mais tempo disponível, formam a clientela básica da unidade. “Naturalmente mais desleixados, os homens são barqueiros e pescadores e passam maior parte do dia no mar ou na lagoa.” Casos específicos de falta de locomoção, segundo ela, são tratados em domicílio pelo médico municipal.
A caminho do centenário, Benta Felicidade precisa de ajuda para contar nos dedos o nome de cada um dos filhos, não reconhece a netarada toda [50 netos, 50 bisnetos e seis tataranetos] e se aborrece quando não entende o que os visitantes tagarelam em sua volta. A exemplo dela, o sobrinho Altamiro Barriga, não abre mão da dieta básica a base de feijão, farinha, frutos do mar e legumes.
O equilíbrio, segundo a geriatra com especialização em saúde pública Eleonora d’Orsi, pode ser um dos indícios da longevidade nas comunidades tradicionais do litoral catarinense, apesar do excesso de gordura em alguns peixes e camarões. Teoricamente, diz a professora, alimentação balanceada com grãos e legumes na infância e juventude, aliada à manutenção da dieta saudável na velhice, proporciona qualidade de vida na etapa de funcionamento mais lento do metabolismo.
Falta mobilidade aos mais velhos
Locomoção é a maior dificuldade dos idosos da Costa, aponta Altamiro Onofre Laureano, o Barriga, 76, que tem se enclausurado no próprio quarto “para não dar trabalho a filhos e netos”. Apoiado na bengala, mas sem proteger os sinais deixados pelo excesso de sol e mar na pele, o velho pescador critica o abandono da reforma do trapiche no ponto 15. “Espero que não seja por motivo político, alegam falta de material. Estranho é que fizeram todos os outros, menos este na frente da minha casa”, lamenta.
Inacabada, a obra licitada pela prefeitura se transformou em armadilha para usuários do transporte náutico. Pilares do abrigo de passageiros estão soltos, o trapiche foi deixado pela metade, não há corrimãos laterais, nem iluminação pública. Não foi construída rampa de acesso a deficientes e idosos, nem reservado espaço para fixação das lixeiras comunitárias.
“Vamos devagar”, repete Barriga, cabo eleitoral udenista respeitado na Costa pela amizade com políticos como Irineu e Jorge Bornhausen e que também herdou do pai, Onofre Amaro Laureano, o tom certo para lidar com políticos. “Ainda sou do DEM [Democratas], o antigo PFL [Partido da Frente Liberal]. Como em futebol e religião, em política cada um tem seu gosto. E nem sempre pode-se contar com aliados do passado”, diz.
Pescador dos bons e fundador da Cooperbarco, a primeira cooperativa de barqueiros da Costa, Altamiro Barriga foi pioneiro na navegação motorizada, em 1971. Naquele ano, instalou na velha baleeira sem casario o motor de centro, de seis cavalos, comprado na extinta loja HM [Hermes Macedo], usada também para transportar doentes em busca de socorro e mulheres parideiras. “Nasceram algumas crianças no fundo da embarcação”, conta.
(Notícias do Dia Online, 27/04/2015)