Moradores tradicionais da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, não entendem “lei dos 30 metros”

Moradores tradicionais da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, não entendem “lei dos 30 metros”

Desconfiado, Vilmar Egídio Góes, o Ziquinho, 67, não saiu para pescar na tarde de ontem. O bote “Vô Egídio” permaneceu atracado no cais improvisado, ao lado das redes amontoadas, enquanto ele e a mulher, Graça, 63, juntaram parte dos dez filhos, genros e netos no quintal de casa para tentar entender a “lei dos 30 metros”.

Pouco sabiam da determinação da Justiça Federal à Prefeitura de Florianópolis, para demolição de todos os imóveis localizados a menos de 30 metros da orla da Lagoa da Conceição. “Nunca fomos notificados, apenas ouvimos dizer. Sempre vivemos aqui, desde meu avô. Dependemos da lagoa para pescar e chegar ao mar”, argumenta o pescador, vizinho da mansão do deputado estadual e ex-prefeito Édison Andrino de Oliveira (PMDB).

Tradicionais na rua Rita Lourenço da Silveira, no centrinho da Lagoa, os Góes são exemplo característico do que acontece com a maioria das famílias de Florianópolis. “Os filhos cresceram, casaram e construíram suas casas em nossa volta”, explica Graça, antes de ser chamada para atender telefonema de advogado, que os orientará na defesa em futura ação contestatória. “Vamos esperar para ver o que vai dar, e se a ordem de demolição atingirá também os ricos e poderosos”, emenda.

Outro que segue o legado familiar e ganha a vida com o que tira do mar, Ilton Manoel Fernandes, o Paletó, mora fora do limite dos 30 metros, mas também duvida que pobres e ricos recebam tratamento igual. “Tem políticos, juízes, empresários, oficiais da polícia, muita gente importante”, desafia Paletó, enquanto reforça as amarras do bote Cigano 3 no trapiche do centrinho.

Antes de ir embora, critica a omissão do poder público, que, segundo ele, nunca ouviu os nativos e deixou invadirem e estragarem a Lagoa a Lagoa. “O Ministério Público deveria punir quem realmente causa danos, como a estação de esgoto da Casan e as pontes estreitas, que só aumentam o assoreamento e dificultam a oxigenação da água”, diz.

Surpreendida pela petição judicial que apressa o cumprimento das demolições pela Prefeitura, a Amola (Associação dos Moradores da Lagoa) convoca a comunidade para reunião extraordinária, na noite de segunda-feira. “Vamos definir estratégia de defesa”, diz. Nativo da região do centrinho, o presidente Alécio Passos, 64, alerta que os danos ambientais da demolição serão mais graves que a atual ocupação, mas defende a abertura de acessos públicos a toda orla.

Mais de 900 propriedades na lista

Pelo menos 923 construções às margens da Lagoa da Conceição estão mira para demolição, de acordo com levantamento da prefeitura de Florianópolis, a partir do processo de execução determinado pela Justiça Federal. A decisão que transitou em julgado, ou seja, não há mais a possibilidade de recurso, determina que construções em terrenos de marinha (que também são Área de Preservação Permanente) em até 30 metros a partir da Lagoa da Conceição sejam demolidas. A determinação se estende a edificações que não tenham a documentação necessária de construção, como alvará e habite-se.

“Apresentamos um plano de levantamento das construções para verificar a regularização destes 923 imóveis. A prefeitura deverá cumprir a determinação da Justiça e, consequentemente, a demolição destas construções”, explica o procurador geral do município, Alessandro Abreu. A decisão afeta prédios comerciais e residenciais e postos de saúde ao longo da avenida das Rendeiras, centrinho, avenida Osni Ortiga e rua Rita Lourenço da Silveira.

O artigo terceiro da resolução nº 303 de 2002 do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) classifica como APP o espaço situado “ao redor de lagos e lagoas naturais, em faixa com metragem mínima de 30 metros, para os que estejam situados em áreas urbanas consolidadas”.

Desta forma, como consta na lei municipal 2.193/85, não pode haver construções irregulares às margens da Lagoa. E devem ser abertos novos acessos à orla, de três metros de largura, a cada trecho de 125 metros, e faixa para a circulação de pedestres de pelo menos 15 metros nos terrenos de marinha.

O processo tramita na Justiça Federal desde 2003, movido pela procuradora do Ministério Público Federal, Analucia de Andrade Hartmann. A primeira decisão teve julgamento em 2009, com decisão do juiz federal Guy Vanderley Marcuzzo, do Tribunal Regional Federal da 4ª região, durante a gestão do prefeito Dário Berger.

Se não cumprir, prefeito pode ser preso

Plano de ações elaborado pela prefeitura de Florianópolis foi apresentado ao Ministério Público Federal, que julgou inadequado o cronograma previsto até janeiro de 2016. No próximo dia 13 de agosto, o município apresentará novamente ao MPF e à Justiça Federal um plano de trabalho em uma audiência de conciliação agendada para as 16h.

Segundo decisão do juiz Marcelo Krás Borges, o município deverá levar cronograma organizado com datas e procedimentos a serem cumpridos. “O Ministério Público entende que deveríamos estar com o processo administrativo mais adiantado. Entendemos que se pratique a Justiça, mas não queremos trazer prejuízo à população, não queremos nos precipitar”, contesta o procurador Alessandro Abreu.

De acordo com o procurador, para executar o plano será necessária a contratação de equipes especial, em plano emergencial envolvendo a Secretaria de Obras, Ipuf (Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis), SMDU (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano) e Floram (Fundação Municipal do Meio Ambiente).

Caso a decisão da Justiça não seja cumprida, o prefeito Cesar Souza Júnior poderá responder por improbidade administrativa. “Estimo que a maioria das edificações não terá legalidade atestada, mas deixo claro que isso não é uma iniciativa da prefeitura. Se não cumprir, o prefeito fica sob pena de improbidade administrativa e ação criminal, com possibilidade, inclusive, de prisão”, comenta o procurador. Apesar de a prefeitura não poder mais recorrer, os proprietários das edificações podem entrar com processos individuais.

Atividades náuticas afetadas

Emerilson Gil Emerim, biólogo e mestre em gestão da qualidade ambiental, classifica como “miope” a visão da Justiça de gerenciamento ambiental neste caso. De acordo com ele, é preciso que o judiciário separe bem o que é impacto de dano ambiental. “Tem que saber o quanto da Lagoa da Conceição está comprometida por estas ocupações. Chamamos de impacto as atividades recorrentes de qualquer ação humana”, diz. E cita como exemplo a produção de gasolina, que é necessária, mas acaba provocando impacto negativo. “O que não pode é um dano que realmente degrade e piore a situação ambiental do lugar”, explica.

Segundo Emerim, o meio ambiente é resultado de questões ecológicas, sociais e econômicas integradas. Ele sugere cautela ao tratar de uma questão como essa. “É preciso avaliar caso a caso, e não generalizar. A própria legislação que estima a distância de 30 metros como APP só vigorou a partir de 2002. Como ficam as ocupações antes desse período?”, questiona.

Para Ernesto São Thiago, consultor em desenvolvimento náutico, a aplicação da legislação sobre Florianópolis, sem levar em conta as particularidades do município, é uma “violência à cidade, um pensamento de gabinete sem atentar para a realidade”.

“Em uma geografia como a nossa, com encostas muito próximas à orla, reservar 30 metros como terreno de marinha inviabiliza ocupações em muitos trechos da cidade. Afeta residências e comércios, e toda a indústria náutica, suas marinas, equipamentos de borda d’água, estaleiros náuticos e uma série de negócios ligados à pesca”, explica.

De acordo com São Thiago, uma solução seria a aprovação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 53, de 2007, que tramita no Senado, e que objetiva passar a gestão da orla marítima para os municípios em todo o país. “Hoje, os terrenos de marinha são objeto de barganha por parte do governo federal, fazendo chantagens políticas antes de liberá-los”, denuncia.

Determinações da Justiça

– Obediência da APP de 30 metros no entorno da Lagoa da Conceição, conforme legislação federal (lei n. 4.771/65 e resolução do Conama nº 303/2002)

– Levantamento das ocupações em faixa de marinha no entorno da Lagoa da Conceição

– Identificação dos responsáveis por essas ocupações, bem como quais obtiveram alvarás e em que data foram expedidos

– Abertura de acessos às margens da Lagoa da Conceição, de acordo com as normas legais, ou seja, caminhos de pelo menos três metros de largura a cada 125 metros, bem como a garantia da faixa de 15 metros na margem para a circulação de pedestres (artigos 91 e 92 da lei municipal 2.193/1985)

(Notícias do dia, 19/07/2014)