09 dez A natureza está ameaçada em paraíso ecológico de Florianópolis
A bióloga Simone Koerich, 34, tinha sete anos quando o pai a levou pela primeira vez. Hoje, mãe de duas meninas, sempre que pode enfrenta a trilha do Pântano do Sul com o marido, Roberto Fernandes, 35, para “recarregar as baterias” na Lagoinha do Leste. Enquanto ele surfa ou pesca com os amigos, ela nada na lagoa, caminha pela praia, mergulha no mar gelado e observa plantas e animais.
A área do parque está relativamente preservada, mas mudou muito desde a infância de Simone. Ela constata, por exemplo, o crescimento das clareiras nas encostas e arredores de trilhas, resquícios de fogueiras e, principalmente, muito lixo – garrafas pet, vidro, plástico, latas, isopor e restos de roupas.
Desta vez, Simone e Beto ficaram três dias. Para manter o espírito familiar mesmo longe de casa, os alimentos foram armazenados coletivamente e as refeições, sem horários definidos, preparadas em revezamento entre os vizinhos de acampamento. São muitos os temperos, mas um dos pratos preferidos é a feijoada de Paulo de Paula, 22, que aproveita as folgas no trabalho, em São José, para “desestressar de frente para o mar”.
Acampar é permitido na área do Parque Municipal da Lagoinha do Leste, entre o Pântano do Sul e o Matadeiro. Mas desmatamentos, fogueiras e churrasqueiras improvisadas estão na mira da fiscalização da Floram (Fundação Municipal do Meio Ambiente) para a próxima vistoria na área, entre os dias 10 e 16 deste mês.
Melhorias nas trilhas também estão previstas, garante o diretor de gestão ambiental João da Luz. A dificuldade de monitoramento, segundo ele, é exatamente o acesso. “Por isso, é importante a ajuda de pescadores e das pessoas conscientes que acampam lá”, diz.
Sem o poder público por perto, quem acampa com consciência tenta controlar a degradação ambiental, pesca e caça ilegais. “Não permitimos barracos de madeira, e contamos com a consciência de pescadores e campistas para proteger o parque”, avisa Luz.
Ação judicial impede reforma de mirantes depredados
Construídos em pontos estratégicos da trilha do Pântano, os mirantes de madeira estão em ruínas. Faltam pedaços do assoalho e parte do telhado. A reforma planejada pela Floram, contudo, está embargada desde que um dos proprietários da área anexada ao parque decidiu cobrar na Justiça a indenização pela desapropriação. “Já temos até compensação ambiental para a obra”, diz o diretor de gestão ambiental da Floram, João da Luz.
À direita da praia, caminhada de uma hora pela encosta íngreme termina na imponente Pedra da Coroa, monumento natural a 200 metros acima do nível do mar. Uma das pontas da rocha lembra uma enorme prancha de surfe sobre uma onda imaginária. Para visitantes de primeira viagem, a dica é ter um dos pescadores ou campistas locais como guia. Se sobrar tempo, dá até para ir a uma das quatro trilhas ou sete pequenas cachoeiras que só eles conhecem.
Quem conhece ajuda a preservar e manter a ordem
Recente tentativa de assalto a duas turistas na trilha principal do parque, que causou apreensão entre frequentadores da praia, começa a cair no esquecimento. “Aquilo foi um caso isolado, não há bandidos escondidos na Lagoinha”, defende o militar aposentado Guilherme Petry, 51, o Graveto, um dos ermitões que, com a distância do poder público, assumem o papel de guardiões informais do parque.
No dia do crime, foi Graveto quem orientou a tripulação do helicóptero Águia, da PM , para captura de um dos suspeitos. “Um deles foi escorraçado do Pântano; o outro nunca mais voltará aqui”, garante. Cabo do Exército, Graveto serviu cinco anos no 8º BIS (Batalhão de Infantaria de Selva), em Tabatinga, Amazonas, no combate a traficantes de órgãos humanos e guerrilheiros das Farc (Forças Revolucionárias da Colômbia), nas fronteiras com Peru e Colômbia. “Há 10 anos não ocorria nada de grave”, completa Maicon Pereira, 37, que há 21 anos frequenta e acampa no parque.
A exemplo de Graveto, Maicon é seguidor do lendário Tibúrcio Manuel Duarte, o velho rastafári que deixou a família em Biguaçu e durante 18 anos se refugiou na Lagoinha. E chegou a erguer uma casa sustentável, utilizando apenas argila e garrafões de cachaça e vinho deixados na praia por outros campistas e pescadores. Espécie de xerife do parque, Tibúrcio se enforcou em outubro de 2002, depois de uma desilusão amorosa.
“Guardiões” abrigam família perdida
O uruguaio Guilhermo Nunez, 42, e a colombiana Noemi, 25, há cinco meses em Florianópolis com a filhinha Eva às vésperas de completar dois anos, estavam na praia do Matadeiro quando ouviram falar sobre a Lagoinha. Aventureiros, chegaram à trilha que contorna o costão, passaram pela Toca da Baleia e caminharam sem pressa diante da imensidão azul do mar.
Ficaram encantados. E perdidos. Três horas depois, a enxurrada deixou escorregadia a trilha íngreme e pedregosa, e ainda mais perigosa a caminhada de cinco quilômetros até o outro lado do morro. A tensão só terminou na foz do canal salobro que liga a pequena lagoa ao mar, após a trégua da chuva e a chegada da noite.
Exaustos, famintos e com as roupas encharcadas, foram acolhidos por Simone e Beto, casal que conhece as trilhas da Lagoinha como o quintal da casa deles. Apresentados ao grupo reunido para a janta, comeram, beberam caipirinha e se divertiram. Antes deram banho quente na pequena Eva, que, protegida dos mosquitos e alimentada com leite na mamadeira, dormiu a noite toda embalada pelo barulho do mar numa das barracas de lona.
Na manhã seguinte, na volta pela trilha do Pântano, o casal parecia deslumbrado com o desfecho da aventura. “Fomos recebidos como família, nos deram comida, cama, e compartilhamos da hospitalidade deles”, diz Guilhermo. “Foram nossos anjos da guarda”, completa Noemi, com Eva cochilando no colo.
Aliviado, o casal reconhece que o encantamento com a paisagem, aliado à irresponsabilidade mútua, colocou em risco a própria vida, e a da garotinha. “Por outro lado, conhecemos grandes amigos, e um lugar encantador. A Lagoinha é o paraíso”, sorri o uruguaio, que procura emprego para ficar com a família em Florianópolis.
A pé ou pelo mar, surfe completa aventura
Eles não querem que diga “para não craudear o pico”, mas a Lagoinha também é o paraíso dos surfistas. Quase todos chegam pela trilha principal, do Pântano, como os irmãos Cristiano, 32, e Alexandre Pain, 28, que moram na Armação e estacionam as motos próximas ao acesso pela SC-406. Mas Rafael Chagas, 30; Marcel Pereira, 29; e Ricardo Vidal, 27, manezinhos do Campeche, costumam chegar pelo mar.
Apertados entre si e agarrados às próprias pranchas, os três amigos navegam 25 minutos no potente jet ski de Pereira para desfrutar das melhores ondas da Ilha. “Aqui sempre tem, com qualquer vento. Entra de leste e de sul, ou com terral de sudoeste ou noroeste”, diz o advogado de família, que reserva duas horas por dia para surfar antes de cair na rotina do escritório.
O mar é bom, com ondas entre dois e três metros, mas exige força e cuidado redobrados até de quem fica à vontade para experimentar aéreos ou quase tubos para relaxar antes do trabalho. “É pesado para remar. São ondas diferentes, que entram fortes”, completa o empresário Rafael Chagas, 30, dono de pousada no Campeche, que aponta outra vantagem básica: “Tem pouca gente na água.”
Rapidamente, eles completam o ritual que antecede à brincadeira. O tempo passa rápido até a parada obrigatória para o piquenique na beira da praia. “Infelizmente, muita gente vem acampar e não leva o lixo de volta”, denuncia o contabilista Vidal, enquanto prepara o jet para o retorno do trio.
(ND, 08/12/2013)