Comunidades do maciço do morro da Cruz, em Florianópolis, perdem espaço das pipas

Comunidades do maciço do morro da Cruz, em Florianópolis, perdem espaço das pipas

Crescimento urbano desordenado restringe espaços utilizados por crianças e adultos que preservam a tradição no céu de Florianópolis

Espremidos pela ocupação desordenada que muda a paisagem e o perfil social do morro, meninos se divertem com o carretel de linha nas mãos. Sobem em lajes ou invadem quintais de vizinhos para soltar suas pipas coloridas e a imaginação sem malícia, brincadeira que só termina ao escurecer, quando os gritos dos pais os devolvem à realidade. É hora de entrar, cuidar dos afazeres da casa e continuar sonhando.

O emaranhado de fios é um dos obstáculos, como mostram rabiolas e linhas enroladas nas redes elétrica e telefônica da rua Antônio Carlos Carvalho, a geral do Horácio. É ali que Edilson, 13, e os amiguinhos Erick, 11, Cleiton, 13, Marlon, 17, e o caçula Pablo, sete, se juntam todas as tardes para ver quem é o campeão do dia. “Só não é melhor porque não existe mais espaço no morro, e tem muitos fios”, diz Edilson.

A partir de 1992, os efeitos da urbanização se agravaram no maciço do morro da Cruz, região que, segundo a Polícia Militar, concentra o mais alto índice de criminalidade de Florianópolis. “Antes, não havia distinção de classes sociais”, recorda o comerciante Cícero Cícero Muniz, 49, que mostra com orgulhos os dedos indicadores cortados pela linha da pipa que ainda solta quando está com a família na praia, em Ingleses. “Ainda é a minha diversão”, diz.

Colecionador das pandorgas que corta do alto da laje da casa onde mora com a mulher e a filha adolescente, na rua São Vicente de Paula, na Agronômica, o serigrafista Izomar Pinto da Silva, 40, lembra que meninos pobres e ricos sempre brincaram lado a lado. “Quando a pipa era cortada e plainava no ar até cair, era quem mais podia correr para pegar, como se fosse um troféu”, conta.

A verticalização dos bairros do entorno do maciço é o maior desafio para os pandorgueiros contemporâneos, segundo Izomar. Avaiano de família botafoguense, ele tem criou uma estratégia para evitar transtornos urbanos, como o trânsito intenso na rua. “Os prédios cortaram nosso barato, mas quando não consigo dormir, aproveito as noites de lua cheia para relaxar e não esquecer que já fui criança”, sorri.

Um dos mestres do corte, o servidor público estadual Dário Souza, o Darinho, 53, fez vários discípulos na Agronômica. Entre eles, os primos Izomar e Olímpio Pinto e o Jorge Mandinga, remanescentes da turma da São Vicente de Paula, que não entendem como o ídolo abriu mão da alegria. “Quando meus pais não me deixavam brincar na rua, soltava pipa da janela do meu quarto. Agora tem muitos telhados na frente”, tenta se justificar.

Campeão não desiste, e faz apelo ao novo prefeito

Refugiado no ateliê improvisado num daqueles loteamentos que atravessam a restinga em direção à praia Grande, na Costa do Moçambique, Rio Vermelho, o engenheiro agrônomo Rodrigo Couto Ferreira Lima, 45, tem uma missão: espalhar pipas pelos bairros do Norte da ilha. Assim, mantém-se conectado às próprias origens e passa adiante a emoção descoberta ainda na infância, quando a brincadeira alimentava a rivalidade lúdica entre as comunidades do maciço do morro da Cruz, colorindo o céu da cidade, da Agronômica ao Saco dos Limões.

Campeão respeitado no maciço e discípulo do mestre Jairzinho da Pipa, Rodrigo empinou a primeira pandorga aos seis anos, e aos nove aprendeu a criar os próprios modelos. Ensinou alguns amigos mais chegados, mas preservou segredos que o tornaram um dos mais criativos e ousados pandorgueiros da cidade. E respeitado, não só pelo calo na primeira falange do dedo indicador direito, mas, principalmente, pela destreza no manuseio da linha revestida com cerol – mistura de cola e vidro moído.

“Quando minha pipa subia, as outras desciam. Eram poucos os que aceitavam o desafio”, recorda Rodrigo, que se orgulha de na adolescência ter cortado 37 linhas numa tarde. “A realidade é outra. Não existe mais espaço para brincadeiras sadias, nem as disputas entre as comunidades”, lamenta.

Orgulhoso do passado no morro e dos troféus conquistados, Rodrigo aproveita terrenos vazios no Rio Vermelho para se divertir enquanto testa as próprias pipas. São, em média, 2.000 por ano, distribuídas a crianças pobres ou entregues em consignação em mercadinhos do Norte da Ilha. “Mantenho o legado e reforço o orçamento de casa”, diz, antes de apelar ao prefeito eleito, César Souza Jr. “A prefeitura precisa reativar os festivais da cidade, para o bem das crianças.”

Família unida pela brincadeira na rua

Filho de oficial da Marinha, o vendedor de carros Jorge Luz de Andrade, o Mandinga, 39, é referência na rua Padre Schroeder, acesso ao morro do 25, na Agronômica. É na casa dele que crianças e adultos fazem fila para comprar pipas coloridas fabricadas artesanalmente ali mesmo, na sala que virou ateliê.

O tempo passou, o antigo pasto da Pedra Oca agora é um casario só, entre as ruas Padre Schroeder e João Carvalho. Mas a paixão pela pipa não ficou na infância. A sensação de liberdade é única, diz o pandorgueiro, que transferiu ao filho João Vitor, 13, o gosto pela brincadeira.

“Já não temos espaço nas ruas, mas a pipa ainda é a minha vida. É como se o pensamento fosse uma extensão da linha solta ao vento”, resume. O “barrão”, aterro da Beira Mar Norte defronte à igreja São Luís, era outro espaço ocupado por meninos e adultos da Agronômica, e que se perdeu com a abertura da avenida.

Estimulado pela mãe, Édia Nazário de Andrade, 75, encarregada das vendas, Jorge costuma promover eventos nas comunidades do maciço, para distribuição gratuita de pipas e linhas. “É uma forma de mantermos a brincadeira e ocupar a cabeça da criançada com coisas boas”, resume. Para dona Édia, saber que as armadilhas do morro não atraíram filho e neto é um alívio. “As crianças passavam o dia brincando na rua, felizes e livres. Não tinham tempo para maldade.”

(ND, 02/12/2012)