12 nov Transformação da Reserva do Arvoredo em Parque Nacional divide opiniões
Projeto para transformação da área protegida entre Florianópolis e Bombinhas em parque tramita no Congresso
Ora sentada, ora deitada, ela tenta relaxar no convés enquanto ouve as instruções da tripulação em meio a tubos de oxigênio, nadadeiras e ansiedade dos novatos. Aos poucos, a concentração aumenta e o corpo de atleta parece entrar em transe até que, 45 minutos e 14 quilômetros depois, o sorriso se abre e os olhos brilham como se tivesse reencontrado um velho amigo.
Fascinada pelo desconhecido desde a infância, a manezinha Carol Meyer, 44 anos, era adolescente quando foi levada pela primeira vez ao arquipélago do Arvoredo. E nunca mais esqueceu daquele lugar. Foi lá, submersa nas águas que mais parecem um gigantesco aquário a céu aberto, que ela descobriu as muitas afinidades com os seres do fundo do mar. “Amarrei uma pedra de três quilos na cintura, para fazer lastro, e fui lá para baixo. Por alguns momentos esqueci como era a superfície”, lembra.
A experiência nas águas cristalinas de Arvoredo foi o primeiro passo para oito recordes mundiais de mergulho livre de equipamentos, com registro da insuperável marca de 18’32’’ no Guiness Book, em 2011. “Isso é como a minha casa. É aqui que venho passear e relaxar quando estou de folga na cidade, é a maneira de não esquecer os segredos do fundo do mar”, diz.
Instrutora profissional, Carol já esteve na laje de Santos (SP), em Abrolhos (BA) e Fernando de Noronha (PE), três parques nacionais onde são permitidos mergulhos contemplativos. Testou o fôlego também em águas do Caribe, mas é ao Arvoredo que ela leva alunos e amigos para batismos de apnéia.
Reserva ou parque nacional, a falta de fiscalização efetiva ainda é o maior problema de Arvoredo, segundo a mergulhadora. Defensora de novos pontos de mergulho no entorno das ilhotas do arquipélago, Carol Mayer entende que turismo subaquático e pesquisas científicas podem andar lado a lado. “Barcos de pesca fazem cercos rápidos e voltam abarrotados ao continente. Também encontramos lixo e restos de linhas de pesca trancados entre as pedras”, relata.
A provável transformação da Reserva Biológica Marinha do Arvoredo em parque nacional mudaria o conceito de turismo subaquático em Santa Catarina, segundo Carol. “As operadoras credenciadas pagariam uma taxa ao Estado, como acontece em outros lugares do mundo. Os mergulhadores seriam parceiros na fiscalização”, diz. Veterano, o empresário argentino Herman Jorge Sentaous, 52, que três anos após o batismo já desceu mais de 300 vezes, acrescenta que o interesse é preservar. “Queremos lugares limpos e ricos em biodiversidade para mergulhar”, diz.
Turismo ou ciência
Encantadora pela beleza e pelo mistério, além de fornecer matéria-prima a importantes pesquisas marinhas, a biodiversidade presente no arquipélago do Arvoredo mantém em lados opostos empresários do setor turístico, mergulhadores e pesquisadores da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). O motivo da discórdia é o projeto de lei, em tramitação no Congresso Nacional, para recategorização da única reserva biológica marinha do Sul e do Sudeste do Brasil.
A proposta é transformar a reserva em parque nacional, categoria menos restritiva entre as unidades federais de conservação. Para quem vive do turismo, seria a solução para viabilizar empreendimentos e qualificar a atividade. Para os pesquisadores, a preservação dos bancos de algas e corais é essencial a seres marinhos, à oxigenação das águas nas praias da zona de amortecimento e à renovação de estoques pesqueiros.
A recategorização, que depende de aprovação no Congresso Nacional e posterior sanção da presidenta Dilma Rousseff, recebeu parecer favorável do ICMBio (Instituto Chico Mendes da Biodiversidade), órgão gestor do conselho consultivo de Arvoredo. Com algumas condicionantes, como faz questão de frisar o biólogo Ricardo Castelli, atual chefe da reserva. “Concordamos em transformar em parque, desde que seja mantida a zona de amortecimento com 850 mil metros quadrados. Outra exigência é a manutenção do atual plano de manejo até a elaboração de outro específico à condição de parque”, argumenta Castelli.
Pelo parecer do ICMBio, seriam mantidos os nove locais já explorados na costa sul/sudeste (zona de amortecimento), e abertos novos pontos nas costas norte e leste da ilha maior, em área protegida. Os entornos das ilhotas das Galés e Deserta, mais ao Norte, na área da atual reserva, também seriam abertos a mergulhos monitorados por operadoras credenciadas pelo Instituto Chico Mendes.
Desembarque, abertura de trilhas, passeios de escuna e implantação de emissários submarinos de esgoto continuariam sendo proibidos no novo plano de manejo, segundo o biólogo. “Pouca coisa mudaria. Apenas seriam autorizados novos pontos de atracamento, sinalizados com poitas, para mergulhos contemplativos”, garante. A pesca profissional ou desportiva também continuaria proibida, o que, segundo Castelli, é uma garantia à preservação e renovação dos estoques de cardumes com valor econômico, comoanchovas e corvinas, abundantes na área.
Fluxo de embarcações afeta vida marinha
Desde a criação oficial da reserva, em 1990, cientistas, ambientalistas, operadoras de mergulho e políticos nunca se entenderam sobre a real utilidade da biodiversidade do Arvoredo. De um lado, aparentemente isolados, estão os pesquisadores da UFSC, que insistem na preservação irrestrita do ecossistema local como garantia à qualidade de vida, no mar e em terra firme.
Quem defende a manutenção da reserva entende que a zona de amortecimento impede empreendimentos, obras e atividades em seu entorno. Um dos exemplos é o emissário submarino do sistema de esgoto de Ingleses, na Capital.
“Grande fluxo de mergulhadores comprometerá áreas de extrema importância científica e ambiental”, alerta Paulo Horta, do laboratório de ficologia da UFSC. Segundo o pesquisador, do ponto de vista dos biomas protegidos pela reserva, o simples trânsito de embarcações já provocaria efeitos nocivos à reprodução de diversas espécies ou grupos taxonômicos. E entre os representantes da flora marinha, Horta cita as algas vermelhas que têm seus mantos, chamados de rodolitos, distribuídos em diferentes locais do litoral brasileiro.
Algas alimentam e produzem oxigênio
Pesquisador na área botânica marinha, Paulo Horta lembra que as algas realizam fotossíntese, sendo em parte responsáveis pela renovação do ar atmosférico e do oxigênio necessário a seres aquáticos aeróbicos. “Elas produzem tecidos vivos a partir da fotossíntese, e estão na base da cadeia alimentar – alimentam animais herbívoros (peixes, caranguejos e moluscos, que alimentam os carnívoros”, explica. As algas do Arvoredo também funcionam como biofábricas de carbonato de cálcio.
Na visão dele, o banco de algas do arvoredo devem ser preservados pela importância ao ambiente marinho e para comunidades que dependem dos recursos pesqueiros, e pela própria fragilidade. “Imagine vários barcos ancorados aqui, soltando resíduos de óleo e prendendo âncoras sobre esse ambiente de rodolitos. É como matar a galinha dos ovos de ouro”, alerta Horta. Outros transtornos previstos por ele com a mudança toque e seriam coleta inerentes à curiosidade humana, barulho e poluição dos motores, movimentação dos sedimentos do fundo do mar com nadadeiras, lixo no mar e entre pedras. “Sem contar que as algas funcionam como oásis na areia do fundo do mar, para alimentar e abrigar espécies ameaçadas de extinção”, alerta.
Mudança ganha força em Brasília
Com operação restrita a oito pontos nas costas sul e sudoeste de Arvoredo, escolas de mergulho e empresas de turismo subaquático do norte da Ilha, de Bombinhas e Porto Belo dependem das condições do tempo e do mar. Em dias de vento sul ou lestada fortes, não conseguem atracar. Empresas de Bombinhas e Porto Belo argumentam, também, que a viagem de barco é mais longa e cara.
Iniciado pela Associação Comercial de Bombinhas, o movimento para a recategorização ganhou apoio parlamentar e chegou com força a Brasília. Os deputados federais Rogério Peninha Mendonça (PMDB/SC) e Esperidião Amin (PP/SC) apresentaram em nome da bancada catarinense projeto de lei que transforma a reserva biológica em parque nacional.
O projeto, segundo os deputados, pretende devolver à região a “possibilidade de exploração turística, com foco no mergulho contemplativo, sem degradar o patrimônio natural”. Mesmo com a mudança, a unidade permaneceria sob o controle do ICMBio, que apóia a proposta com restrições.
Um dos idealizadores do movimento, o empresário Francisco Celimar Maciel, presidente da Associação Comercial de Bombinhas, tem dois argumentos básicos. “Já fomos a capital catarinense do mergulho, e hoje a atividade está perdendo espaço. Precisamos gerar emprego, incrementar o comércio e a hotelaria da cidade. Além disso, a abertura para parque vai facilitar a fiscalização. “Ninguém protege o que não conhece”, argumenta.
Segundo Maciel, as próprias escolas de mergulho funcionam como fiscalizadoras. “A intenção não é degradar, é viabilizar o uso sustentável”, garante.
Enquete
Vitória Regina e Osni Silva, 55 anos – Estimulada pelo marido, professor de educação Física da UFSC, ela começou a mergulhar há seis meses, e desde que superou a sensação inicial de fobia, não parou mais. Depois do batismo no Arvoredo e ver que o mundo embaixo d’água é apaixonante, o casal de Florianópolis se prepara para mergulhar em águas internacionais e ver de perto a grande barreira de corais do Caribe. Apaixonados pela natureza, são unânimes também quando dizem que
Carolina Pruner, 31 anos – Funcionária municipal em Balneário Camboriú, costuma vir a Florianópolis com frequência para rever amigos e passear pelas praias. Certo dia, foi convidada pela amiga Karine Morande a conhecer o fundo do mar, e decidiu ser batizada no Arvoredo. Já desceu duas vezes, e agora pretende visitar outros pontos de mergulho pelo Brasil afora. Depois de 30 minutos entre tartarugas, peixes coloridos, corais, cavalos marinhos e algas , ela volta com um sorriso revelador. “A sensação é indescritível, Muita paz e silêncio. A gente perde noção do tempo lá embaixo”.
Wen Frangxiong, 24 anos – Estudante de administração – comércio exterior na UFRGS, está há seis anos no Brasil. Veio da China para intercâmbio linguístico, fez amigos e resolveu ficar. Sempre que visita Florianópolis, tem curiosidade pelas ilhas que cercam a cidade, e foi batizado no Arvoredo, junto com o amigo Leandro Pinto Perez, futuro zootecnista que também voltou deslumbrado à superfície. Depois de ficar alguns minutos mareado, mais do que revigorante, o mergulho foi fascinante “O fundo do mar realmente é misterioso. Assustador e belo, e precisa ser protegido para sempre”.
Alexandre Pastorino, 40 anos – Veterano, o analista de sistemas mergulha há cinco anos e já foi mais de 400 vezes ao fundo do mar. Arvoredo foi onde tudo começou para o mergulhador, que já salvou algumas garoupas fisgadas com a linha de pesca arrebentada junto ao anzol. O grau de dificuldade na área, segundo ele, é um dos maiores do Brasil por causa da visibilidade restrita, entre dez e 15 metros, mas compensa pela diversidade de espécies. “Os mergulhadores são os mais interessados na preservação, somos os verdadeiros fiscais do Arvoredo. Afinal, mergulhar primeiro apaixona; depois vicia.”
Conheça Arvoredo
– A Rebio, única no Sul e Sudeste do Brasil é formada pelas ilhas do Arvoredo, das Galés, Deserta e pelo calhau de São Pedro é a única do Sul e sudeste do Brasil.
– Reservas biológicas são áreas com espécies da flora e fauna de relevante significado científico, com restrições a atividades humanas, exceto pesquisas.
– Não são permitidos ocupação, turismo, caça, pesca, apanha ou introdução de espécies silvestres ou domésticas.
– A reserva foi criada em 12 de março de 1990, para defender a biodiversidade marinha e terrestre e importância histórica e arqueológica.
– A oeste da baía de Zimbros, em Bombinhas, e ao norte de Florianópolis, abrange também áreas costeiras de Governador Celso Ramos Porto Belo e Tijucas .
– Com 17.600 hectares, preserva uma amostra representativa da mata atlântica e dos ecossistemas da região costeira ao norte da Ilha.
– Suas ilhas e ilhotas, águas e plataforma continental abrigam espécies raras ou ameaçadas de extinção e tem sítios arqueológicos de até quatro mil anos.
Reservas Biológicas Marinhas
Representam 53.849 ha (0.02% da área total marinha brasileira), divididas em duas únicas áreas federais: Atol da Rocas (RN), com 36.249 ha (68,64%), e Arvoredo (SC), com 17.600 ha (31,36%), inclusas as áreas marinha e territorial.
Mergulho
Média – entre oito e 33 metros de profundidade, nas costas sul e sudeste de Arvoredo
Ponto mais profundo – 36 metros, na laje diante do farol
Pontos liberados
Laje, ao sul do farol
Saco do Farol
Saco do Vidal
Saco da Tartaruga
Saco do Paraíso
Saco do Engenho
Parcel do Boi
Saco do Capim
Ponta do Granada
(ND, 11/11/2012)