07 set Garimpo nos escombros do tempo
Artigo escrito por Gilberto Gerlach, autor do livro Desterro – Ilha de Santa Catarina. Fundador do Clube de Cinema Nossa Senhora do Desterro (DC, 04/09/2010)
O testemunho mais antigo que temos da Ilha de Santa Catarina remonta a 600 aC., quando os hunos e os fenícios passaram por aqui a caminho do México. Teria a jovem Cabíria, raptada pelos fenícios durante a 3ª guerra púnica (218-201 a.C.), costeado nossas enseadas? O sítio em torno das ilhas do Arvoredo e Deserta foi portal muito utilizado por estes povos nômades que se atiravam em suas embarcações em busca de novos mundos.
Mas a história da Ilha de Santa Catarina só começa a ser contada quase mil anos depois, com a descoberta do Brasi, e daí, em 1516, da Ilha. Que grande hiato existe aí, nesta caverna obscura animada por estes povos que por aqui passaram, comeram da mandioca e deixaram descendência. Somos um grande emaranhado de genes e sequer podemos afirmar nossas reais origens. Açoriana? Mas esta é uma história relativamente recente, mais para os meados do século 18 dC. Quem eram esses brancos quinhentistas – Rojas, Méndez e Rodas, que aqui foram desgarrados e entregues ao cacique Tupã Verá para fazerem cunhas e iscas? Mais uma vez caímos num cul-de-sac cujo novelo lembra aquelas majestosas barbas-de-velho das ancestrais figueiras.
O livro Desterro, Ilha De Santa Catarina, em dois tomos, 664 páginas, lançado, ontem, no Palácio Cruz e Sousa, em Florianópolis, procura extrair dos escombros deixados pelo tempo em nossa maltratada memória os cacos que resistiram às intempéries, as imagens que não desbotaram, os escritos que não foram queimados.
De Y-Jurere-Mirim, Meiembipe, Porto dos Patos, Baía de los Perdidos, para acabar nesta sonora e digna nominação – Nossa Senhora do Desterro. (Ainda existem muitas pessoas que sentem ojeriza pelo nome, preferindo-o ao atual ou sua corruptela).
Quase sempre um lugar de passagem, bom porto, povo de boa índole pronto a servir e recarregar os porões dos navios de mantimentos. O contrário também é verdadeiro, muita carnificina foi cometida.
Uma paradisíaca espéride carregada dos mais poderosos e antagônicos desígnios.
Senti isto pela primeira vez quando comecei a frequentar o atelier de Martinho de Haro na Altamiro Guimarães, 25, e, perto, na do Passeio, depois Formosa, onde morava Oswaldo Rodrigues Cabral. Isto lá pelo ano de 1963. O encontro com 17 fotografias apagadas, datadas de 1890, despertou-me para aquela cidade fantasma que já não existia, mas ainda guardava um cenário de bucolismo. Logo me estaquei no propósito de voltar os olhos para trás, acender a lanterna e tentar entrar nesta caverna platônica do Desterro. Desvendar e acentuar os traços caligráficos daquelas imagens esmaecidas. Como seria a vida daqueles seres que só tinham como luz o sol, a lua, os vagalumes e o candeeiro aceso com o óleo da baleia? Era necessário desfiar esta teia onde funâmbulos seres locomoviam-se em suas construções na pura sobrevivência.
O trabalho requeria paciência e tempo, na insistente busca pelos alfarrábios guardados sob goteiras em nossos arquivos e bibliotecas. Aqui e em outras espalhadas pelo mundo. Era uma cidade sempre descrita por muitos numa repetição plana das memórias. O mistério só poderia ser atingido através da reprodução da imagem, figurando o movimento: instinto sem dúvida tão antigo quanto a humanidade. Das imagens, dos pergaminhos e das melífulas essências das parasitas abandonadas. Von Chamisso fala do poder destas sensações esotéricas dos seres sem sombras.
Por onde começar se sabemos que não há começo nem fim? Pinçar as imagens disponíveis, observá-las atentamente, com muito carinho, para desvendar a alma ilhoa. Quais narrativas seriam aquelas desenhadas em nossas pedras? São muitas vozes, e no cipoal, só uma certeza se faz: à escuridão da noite sucede-se o clarear do dia. A trilha é aquela imposta pela natureza, cronológica.
No descobrimento do Brasil, a Ilha de Santa Catarina era cortada por vários rios, sendo que o principal, o da Bulha, desaguava na Baía Sul. A decisiva participação de um Lopez de Haro no envio de Fernão de Magalhães à Terra do Fogo, por onde este mais proeminente herói da epopeia marítima encontrou nossa Ilha, nos últimos dias de dezembro de 1519. Solis, Aleixo Garcia, Caboto, Ramires, Montes, Barlow, Cabeza de Vaca, Schmidl e Hans Staden são alguns dos vários personagens que aqui estiveram no século 16. De 1550, através da narrativa de Staden, temos a imagem da Ilha num plano aéreo en arrière, figurando Ilha e Continente. De Bry deu mais contornos e cores em 1592. Posteriormente, o holandês Van der Aa, em 1706, retratava a retirada da cruz que estava fincada na parte extrema continental, onde hoje está a cabeceira da ponte velha.
Sieur Durret, nobre francês, em 1708 relata a periculosidade da Ilha por estar ela sob o domínio de “bandidos”, chefiados por Manoel Manso de Avellar. Neste século 18 passamos a conhecer melhor o povoado através de Frézier (1712), Frei Agostinho de Sta. Maria (1722), Anson (1740), Courte de La Blanchardière (1747), Bougainville (1722), Böhn (1774) e La Pérouse (1785).
Com La Pérouse na Ilha, quatro anos antes de eclodir a revolução na França, a caverna ilumina-se e temos, no Largo da Matriz, a primeira projeção de imagens, na improvisação das velas marítimas como écran, a tela reveladora. Registramos as primeiras exibições da Lanterna Mágica (o Cinematógrafo do século 18) no Brasil, aqui em nossa Ilha, ao som de serinettes e órgãos da barbarie.
No alvorecer do século 19, nova expedição científica chegava à Ilha, desta vez a esquadra russa de Von Krusenstern, equipada de cientistas e naturalistas, além de alguns japoneses. Rússia, Alemanha e Japão eram os novos inquilinos, que por aqui ficaram durante cinco semanas, estudando nossa fauna e flora, e registrando com desenhos os contornos de uma cidade nascente.
Com a abertura dos portos às nações amigas, em 1808, ano da chegada de Dom João VI ao Brasil, a Ilha passou a ser ainda mais frequentada, explorada e elogiada. A miscigenação enriquecia ainda mais com as tascas da Rita Maria até o Bairro da Toca sendo frequentados pelas mais variadas espécies de homens do mar.
À página 88, Nos tempos d’El Rey, um lemur catta observa a gravura de Duché de Vancy, com o governo passando sucessivamente das mãos do governador Sete Carapuças (Teixeira Omem) até chegar às fanfarronices do governador da Pomona, D. Luiz Mauricio da Silveira. “Toda de vermeio vistida, a Pomona bota carrinho de arruá, rouvalha rica, sota di luxo e cavalinhos de paleine”. Era a transfiguração ilhoa de La Carrosse Du Saint Sacrement através do pincel de João Pedro, o Mulato.
Além de Duché de Vancy e von Tilenau, o jovem Louis Choris deixava, em 1815, quatro exuberantes pranchas sobre o interior e o litoral da Ilha.
Com a independência do Brasil, em 1822, a França continuava a enviar seus sábios para explorar o mundo novo e aí incluindo a Ilha. Saint-Hilaire, De La Gravière, Duperrey, Lesson, Jules Le Jeune e Garnot são algumas dessas personalidades. A entrada de D. Pedro I em 29 de novembro de 1826 permitia a Debret fazer o esboço de nove panoramas da Ilha. O convívio de um ano (1832) na Ilha do litógrafo francês Bacle resultaria em farto material iconográfico que seria perdido sob a requisição de Netuno nas costas de Montevidéu. O intrépido Du Petit-Thouars, temido pelos piratas em seus ataques anfíbios, esteve na Ilha por duas vezes, em 1825 e 1837.
Em outubro de 1845, Desterro era visitada pelo Imperador D. Pedro II e sua esposa D. Teresa Cristina. Com o livro Desterro, Ilha de Santa Catarina, divulgamos o resgate que os colecionadores Paschoal e Ruth Grieco fizeram das terras portuguesas para o Brasil, o quadro de Vicente Prieto representando o mais glorioso momento da nossa história.
O reverendo Charles Samuel Stewart, entre 1852-1853, deixou-nos um importante relato, talvez o mais gracioso e preciso. Extenso, relata muitas cenas do nosso cotidiano: a Praça Pública, seu Mercado, hotéis, enterro, procissão e lugares perigosos. Chega a imprensa à Ilha de Santa Catarina. Ainda mais 40 anos de magia com muitas cenas de prestidigitação e sessões da Lanterna Mágica, o teatro regorgitando sob a anuência da ideia nova, nossos poetas e artistas sob a proteção do governador socrático Gama Rosa. Até que a cidade sucumbe às forças republicanas e muda de nome.