Duas Floripas

Duas Floripas

Da colune da Sérgio da Costa Ramos (DC, 06/05/2010)
Na verdade, existem duas Floripas: aquela que se vê do alto e que emocionou o aviador-escritor Antoine de Saint-Exupéry, no início dos anos 1930 e aquela que se materializa aqui embaixo, no duro chão da realidade, em meio à barafunda do trânsito. Vista do céu, viçosa e verdejante, a Ilha parece mesmo um espaço vizinho do Éden. Mas, no labirinto das ruelas ancestrais, a cidade revela parentesco com uma ratoeira de becos e enigmas, todos indecifráveis, com essa conta de mil novos veículos dando em árvore todo mês.
Produto de Deus, a Ilha que se enxerga do céu tocou a alma do lendário piloto de Voo Noturno e Correio Sul. A bordo do seu Bréguet-Latécoère, ele seguia o tapete dourado das dunas até aterrissar no Campeche, ninho de seu pássaro, hipnotizado por tanta beleza.
O piloto teria se encontrado no Café Nacional, esquina de Praça XV com Felipe Schmidt , com o professor, humanista e francófilo Mâncio Costa, a quem teria feito uma declaração de amor à Ilha:
– Esta visão seria a última escolhida por aqueles que se descobrissem condenados à cegueira, tal a sua força de guardar-se, eterna, na lembrança do homem…
Verdade ou ficção, o elogio seria merecido… até que o aviador conhecesse a mediocridade dos que planejariam a Capital no porvir daqueles anos de “bela época”. Produto do homem, a Floripa que se vive em terra firme é cada vez mais uma antessala do inferno.
O caos no trânsito está espancando a qualidade de vida da cidade. A qualquer ponto que se vá, a qualquer hora, o fluxo de veículos é lerdo, obturado, irritante. Isso numa cidade de pouco mais de 400 mil habitantes e… 350 mil veículos.
Quer dizer: contraímos todas as mazelas de uma grande metrópole sendo, ainda, uma cidade de porte médio. Ora, ninguém precisa ser um “expert” como o craque urbanista Jaime Lerner para diagnosticar que o problema do trânsito é estrutural. Não fosse o governador Colombo Salles, que construiu as estradas asfaltadas do Norte e do entorno da Ilha, ainda teríamos aqui a mesma malha de picadas e lombadas dos tempos do brigadeiro Silva Paes – o construtor dos fortes em 1739.
Em matéria de circulação urbana, estamos caminhando, céleres, para o colapso absoluto e para uma dramática catatonia – que é a morte em vida.
Um plano diretor, concebido com o ânimo comunitário dos que se dispõem a construir – e não apenas “obstruir” –, deveria ser a obsessão do Executivo e do Legislativo. Uma criteriosa, desapaixonada e “desideologizada” lei de ocupação do solo, com a expansão da cidade para o Leste. A construção da Via Parque, debruando o Campeche até o Rio Vermelho, pela orla, marcaria uma “interiorização” controlada.
Mudança que seria assinalada pelo privilégio do transporte de massa – tanto marítimo quanto ferrocarril. Com a inovação de um metrô mais “barato”, ainda a céu aberto, sem linhas de subsolo, haveria algum desafogo no trânsito Ilha-Continente. Coisa para uns 20 anos de maturação – e olhe lá… E com o Centro da cidade chegando ao Norte e ao Sul da Ilha, não apenas por rodovias e túneis, mas pela via marítima.
Este cenário sugere as Doze Tarefas de Hércules, com o prazo de um quarto de século para a sua execução – e um “vestibular” marcado para 2035, quando Floripa teria tantos túneis quanto… o Rio de Janeiro.
Plano ambicioso, desde que a picuinha, a ecoteocracia e a preguiça – o ânimo de “deixar como está pra ver como é que fica” – não condenem a Capital a um estado de resignada sonolência, sob a inércia de administradores públicos interessados apenas na “próxima eleição”.