Farra do boi: Proibida, mas aconteceu

Farra do boi: Proibida, mas aconteceu

É festa, alegria e tradição. É também maus-tratos aos animais. Apesar de ser proibida por lei e de a polícia dizer que vai coibir os farristas, a farra do boi aconteceu neste final de semana nos bairros Palmas, Fazenda da Armação e Ganchos, em Governandor Celso Ramos. Um repórter do Diário Catarinense, sem se identificar, acompanhou tudo e registrou alguns dos momentos com uma câmera digital

As ruas estreitas à beira-mar são tomadas pela multidão. Cada grupo traz o seu carro, coloca o volume do som no máximo e, então, vários estilos musicais são ouvidos. As casas ficam lotadas, e as pessoas vão às ruas. É uma espécie de Carnaval fora de época. Os vendedores ambulantes instalam suas barracas e com bebida – a preferida é o maraca, mistura de bebida alcoólica com maracujá, – e a música, a brincadeira com o boi pode começar.

CAMISETAS PERSONALIZADAS

Os grupos de farristas são organizados, cada um tem uma camisa personalizada para poder arrecadar dinheiro para a compra dos animais. Existe uma união entre os integrantes dos grupos. Uma das camisas trazia a seguinte frase: “Amigo não é aquele que diz vá em frente, mas sim o que diz vou com você”. Para eles, nada disso passa de uma brincadeira. Mas a tensão existe, afinal, a brincadeira do boi é perigosa e proibida.

Com o passar das horas, o carro com reboque traz o animal até o meio da multidão. Motos carregadas com três ou quatro pessoas e veículos lotados seguem buzinando, avisando que a farra vai começar. Ansiosos, os curiosos cercam o veículo e, então, o animal é solto ou na rua, na praça ou nos mangueirões.

Forma-se uma roda, onde os corajosos usam a camisa como uma capa e atiçam o boi, que, furioso e assustado, corre em direção aos farristas sem se importar com o que tem pela frente. Assobios, berros e tapas, tudo para enfurecer e cansar o animal. Dependendo do bairro onde a prática acontece, ele foge para o mar ou para o mato. Senão, é novamente capturado pelos seus donos e colocado dentro do caminhão para, então, repousar e ser preparado para mais uma rodada.

O povo, que apenas observa, também corre perigo, afinal o bicho está solto e em direção à multidão. Em um desses casos, um rapaz pulou um muro e quebrou a perna. Durante a noite foram vistos cerca de cinco ou seis bois soltos pelas ruas e nenhum policial para presenciar a farra, que, por sinal, acontecia em frente à prefeitura municipal.

INVASÃO DE PRIVACIDADE

Um dos farristas que estavam no mangueirão de Palmas disse que a brincadeira do boi acaba sendo melhor que o Carnaval da região. A tradição, segundo o jovem, une as pessoas que se divertem com a festa.

– Durante a farra do boi, a comunidade se une e todo mundo se encontra. Pessoas que não se viam há muito tempo se reencontram para participar da brincadeira. É muito divertido pra quem participa.

Nas casas de estilo açoriano, os moradores, em sua maioria pescadores, passam a tradição adiante. Pais e mães sentam em suas cadeiras de praia em frente à casa com os filhos, netos e sobrinhos. Comem e bebem, divertindo-se com o movimento.

Quando a farra começa, os pequenos e adultos entram no clima e atiçam o animal. O boi, muitas vezes acuado e assustado, amassa os carros estacionados e reluta diante das provocações. Comportamento que é castigado com amarras em seus chifres e, dessa maneira, o animal segue na festa a contragosto.

A maioria dos moradores de Governandor Celso Ramos aprova e aceita a farra do boi. Mas uma minoria não se sente à vontade com as invasões domiciliares durante a Quaresma. Afinal, durante a fuga dos animais, os farristas entram nas propriedades particulares para se proteger e, até mesmo, aproveitar o espaço para brincar com os bois.

No domingo à tarde, uma casa da Fazenda da Armação foi invadida. O dono, que não quis se identificar, passou o feriado em um hotel de Florianópolis para não ter problemas no período festivo. Mas não teve jeito. Durante o almoço em família recebeu a notícia: em seu terreno havia no mínimo três bois, além da multidão de farristas.

– Na hora, o caseiro ficou sem saber o que fazer. Não sabia se cuidava do cachorro, que tinha sido envenenado, ou se espantava os farristas que estavam tentando invadir a parte interna da casa. Chamamos a polícia e, só uma hora depois, ela apareceu. Conferiu se houve furto e a presença dos bois no terreno. Depois disso, foi embora, sem fazer nada – relatou o dono da propriedade.

No início desta semana ele disse que vai procurar uma imobiliária para colocar o imóvel à venda. Segundo o morador, o local não condiz com a imagem que é passada aos turistas.

– Enquanto nas ruas pessoas embebedadas gritam irracionalmente para que maltratem um animal e destruam as propriedades alheias, outras, nas igrejas gritam evocando Jesus. É uma fé irracional.

UMA CIDADE SEM LEI

Durante a farra do boi, a cidade se transforma em um local onde as leis são ignoradas. Nos bairros tudo acontece, nem a polícia nem as ambulâncias de atendimento médico são vistas. É cada um por si. Motoristas embriagados com as latas de cerveja nas mãos e motocicletas com mais de três pessoas circulam tranquilamente em meio ao povo.

A bebida alcoólica pode ser comprada e consumida sem nenhum tipo de exigência de documentação nas várias barracas espalhadas pelo local. A única lei que é respeitada pelos farristas é a do silêncio. Após a primeira hora da madrugada, todos os sons automotivos são desligados, uma espécie de acordo entre moradores e participantes da festa para não incomodar quem não participa.

A RUA DO SUFOCO

Em Palmas, um dos pontos preferidos pelos farristas é a Rua Manoel Honório Marques, conhecida como a Rua do Sufoco.

O local leva este nome porque não tem saída, é estreita e, no final, há um mangueirão, uma espécie de ringue. Lá, os bois são cercados pelos farristas e obrigados a participar do jogo.

Os curiosos ficam do lado de fora pendurados na cerca ou nos galhos das árvores, assistindo à brincadeira, como em um jogo de futebol.

(Por Renan Koerich, colaborou Alanna Kern, DC, 06/04/2010)

A favor do ordenamento
Arante Monteiro Filho, o Arantinho VICE-PRESIDENTE DA CASA DOS AÇORES DE SANTA CATARINA

O empresário Arante Monteiro Filho convive com a farra do boi desde que nasceu. Para ele, a prática é uma manifestação cultural que foi criminalizada. De acordo com o empresário, o ideal seria que a prática fosse ordenada, com horário e local para acontecer.

Diário Catarinense – Por que o senhor é a favor da farra do boi?

Arantinho – Sou a favor porque é uma manifestação cultural que veio dos Açores. Sou a favor mesmo depois da polêmica, a partir da década de 1980, e principalmente com a visão do Diário Catarinense, que começou a não se interessar pelo lado cultural, mas pelo lado da maldade contra os animais.

DC – Como deveria ser a farra do boi?

Arantinho – Sou a favor que haja um ordenamento para que esse povo possa continuar a fazer a sua manifestação cultural herdada há mais de 200 anos. Não se acaba com uma manifestação cultural fazendo uma lei. É pior se não houver um ordenamento porque as pessoas continuarão a fazer a farra do boi clandestinamente, fora da lei. Sou de origem açoriana e vi isso desde pequeno. De uma forma geral, as manifestações culturais com os animais existem no mundo todo. No RS tem os rodeios, assim como em SC. Tem ainda as vaquejadas no nordeste e a festa de Barretos em São Paulo.

DC – E como seria este ordenamento?

Arantinho – Cada lugar seria controlado pelo Estado. A polícia teria um mapa com informações de onde ocorreria a festa. No Pântano do Sul, por exemplo, o boi seria solto a partir de uma determinada hora e só por meia hora ou 40 minutos, dependendo de uma avaliação técnica. O animal teria que ser determinado, como, por exemplo, um touro. Em locais mais urbanizados, como no Pantanal, só poderia ser feita em um cercado. Se ficar clandestino, fica pior. Porque é usado qualquer tipo de animal, vaca, terneiro e bichos manso. A proibição não resolveu e não vai resolver nunca.

DC – Mesmo assim não haveria crueldades?

Arantinho – Temos que ser contra qualquer tipo de crueldade. Não concordo com o fato de que só a farra do boi é criminalizada enquanto outras manifestações não são. Num rodeio todos sabem que se amarram as genitálias do animal para que ele pule mais alto. E quando um boi é laçado, quebra a perna, um pescoço, a imprensa não divulga nada e trata como incidente. Isso também é violência, mas as pessoas batem palma.

(DC, 06/04/2010)

Uma deformação cultural
Halem Guerra Nery, PRESIDENTE DO INSTITUTO AMBIENTAL ECOSUL

Halem Guerra Nery combate a farra do boi desde a década de 1980. De acordo com ele, a prática já diminuiu bastante, mas só vai acabar quando se conseguir impedir uma nova geração de farristas. Halen diz que a farra do boi é uma deformação cultural e se diz contra qualquer uso de animais para divertimento.

Diário Catarinense – Por que o senhor é contra a farra do boi?

Halem Guerra Nery – Nós nos deparamos com esta deformação cultural, na Grande Florianópolis, no início da década de 1980. Em 1982 nós fundamos a Associação Catarinense de Proteção aos Animais (Acapa). Sou contra porque há todo um ritual de violência, não só com o animal, mas com as pessoas, com o patrimônio público e privado. Os animais são seres que sentem, que têm fome, frio, estresse, medo. Nós somos contra até que se use animal para qualquer tipo de divertimento. Alguns dizem que nem tocam nos bichos. Mas é uma turma alcoolizada, com veículos ou a pé. Às vezes, uma comunidade inteira de 2 mil pessoas correndo atrás de um ser vivo. Não tem como não causar mal físico. O animal se joga em arames farpados, entra no mar e morre afogado, tentando se livrar daquela tortura. Não há justificativa para esta violência no atual momento civilizatório. Estamos no século 21.

DC – E quanto aos rodeios e touradas. O senhor também é contra?

Halem – Com certeza. Isso também está acabando. Barcelona, na Espanha, aboliu as touradas. Também somos contra os rodeios, porque os animais se machucam e lutamos contra isso. Vários rodeios já foram barrados. Em Florianópolis, já acabamos com um rodeio e, em um outro, a juíza proibiu qualquer instrumento de tortura que pudesse causar danos ao animal. Temos uma campanha importante no Brasil contra o uso de animais em circo.

DC – Algumas pessoas defendem que a farra do boi poderia ser ordenada. O senhor concorda com isso?

Halem – Não. A farra do boi foi proibida pela Justiça. A manifestação do Supremo Tribunal Federal foi bem clara: mesmo que não haja violência contra o animal. O que tenho de lições é que não há forma de regularizar, ordenar, regulamentar. Chega um momento em que se perde o controle em função do número de pessoas. A polícia não tem estado efetivamente presente quando a farra está ocorrendo. Barreiras são eficazes parcialmente. Muitos animais vão para os locais antes dela. Me recuso a discutir isso porque a farra é proibida.

(DC, 06/04/2010)

Prática será investigada

O Ministério Público Estadual vai investigar as denúncias de farra do boi em Governador Celso Ramos. O promotor de Justiça Aurélio Giacomelli da Silva, da área do meio ambiente, vai apurar se houve a prática e por que ela não foi coibida como relatou o DC na edição de ontem e confirma nesta reportagem. De acordo com o subchefe de comunicação da Polícia Militar (PM) João Schorne de Amorin, pode ter havido alguma farra do boi em algum local da cidade.

– A PM não é onipresente. Ela está nos locais de maior aglomeração. Se a PM estiver em um local, eles vão para o outro – declarou.

Segundo Amorim, em torno de 40 policiais entre ambiental, rodoviária estadual e, em regime de alerta, do Batalhão de Operações Especiais (Bope), trabalharam na região de Governador Celso Ramos neste final de semana. Em dias normais, quatro agentes cuidam da cidade.

– Temos que ter cuidado. Não é porque tinha mil pessoas na praça que vamos ser levianos e dizer que elas estavam cometendo crime e participando da farra do boi – opinou Amorin.

O subchefe disse ainda que neste ano foram registradas 235 ocorrências de farra do boi. Florianópolis foi a campeã, com 149 casos. Logo depois vem Governador Celso Ramos, com 64. Ainda foram apreendidos 54 bois, 44 em Celso Ramos. Também foram presas 12 pessoas – cinco em Navegantes, três em Bombinhas, duas em Itapema, uma em Florianópolis e uma em Porto Belo.

O promotor de Justiça Aurélio Giacomelli vai iniciar a investigação pelos depoimentos de todos os policiais civis e militares que estavam de plantão em Governador Celso Ramos durante a Páscoa. Eles deverão esclarecer por que não teriam chamado reforço.

Também deverão indicar os nomes de todos os farristas. Depois, a promotoria vai investigar os farristas, apurando a prática do crime previsto no artigo 32 da Lei número 9.605/98. A pena é de três meses a um ano e multa.

(Por Mauricio Frighetto, DC, 06/04/2010)