29 abr 50 anos de Praia Clube
Do blog de Sérgio da Costa Ramos (ClicRBS, 29/04/2010)
Poucas paisagens ressuscitam o passado com tanta força quanto uma translúcida manhã de outono em Coqueiros. Leio, no Cacau Menezes, que o Praia Clube está festejando os seus 50 anos neste sábado — e, imediatamente, me vejo em bermuda, calção de banho por baixo, pente atravessado na cintura, a bordo de um Gostosão do “Bom Abrigo”, rumo ao banho de mar na Praia da Saudade — ela ainda está lá, com restaurantes, lojas e bancos ao seu redor.
Coqueiros. Onde a gente sente ausente o futuro e o presente. A água mansa permite um único talho na sua superfície plana: o riscar da quilha de uma bateira em sua despretensiosa pescaria — baiacus e cocorocas — na paisagem imortalizada por Hassis.
Na quietude da manhã azul, um anzol fisga o passado — e o traz para a superfície da vida, estrebuchante como um peixe capturado. Entre as suas palmeiras e o seu velho trapiche, ancorado no umbigo do Praia Clube, vejo moças dourando o corpo, embrulhadas em maiôs inteiriços — os revolucionários Catalinas — traje de banho de nove entre 10 beldades da Floripa dos anos 50.
Depois do Praia Clube, vinha a Praia do Meio, meia-lua de areia entre pastos e pitangueiras. Homens e Algas, de Othon Gama D’Eça, mais do que um livro de memórias em forma de pequenos contos, é um documento humano da vida à beira-mar, em que os personagens se exprimem na língua regional dos manés-pescadores e o escritor combina o vivo contraste do coloquial açoriano com a luxuosa tapeçaria do seu verbo elegante:
Coqueiros, todos os verdes ao fundo. O verde áspero dos butiazeiros, o verde esguio dos canaviais, o verde reluzente das pitangueiras, o verde franjado dos cedros, o verde sombrio das laranjeiras e o verde crespo das goiabeiras imóveis, sob o vôo inquieto dos sanhaços.
Isto, no tempo em que Coqueiros tinha butiás, canas, pitangas, goiabas e passarinhos. E não era apenas uma via lenta e larga, entre prédios e um feérico comércio, além de uma crônica policial, mais para Hitchcock do que para Othon D’Eça.
A saudade boia como uma boia de pneu sobre o qual se esticava o dorso das mulheres de maiô, circunferências negras e flutuantes, que revelavam seu passado de rodas veiculares, com os curativos expostos na forma de “esparadrapos de borracha”, sobrepostos como uma cicatriz.
Essa queima de memória crepita como graveto seco dentro do meu peito, acendendo um fogo capaz de flambar o passado — e revivê-lo em postas, como uma tainha ovada de surpresas.
Saltava do ônibus bem em frente da igrejinha, ajustava o cabelo, descia a rala campina até a praia, entre as “cabines” de troca de roupa — as paredes providencialmente salpicadas de buracos de voyeurs — pronto para a emoção de testemunhar a nudez insinuada pelos novos maiôs colantes de látex.
A vida era doce, apesar da amargura de James Dean em Vidas Amargas, a bela adaptação de Elia Kazan ao magnífico East of Eden, de John Steinbeck. Aliás, um realista tão fiel às paisagens e aos tipos humanos quanto o Othon D’Eça de Homens e Algas.
Recuo 50 anos e embarco naquele Gostosão memorial, que me deposita outra vez bem em frente à igrejinha, prelibando a manhã de sol e a cortina de mar azul que debrua o Praia Clube — a ser tão bem lembrado num risoto de fim de semana…
Sinto saudades da Praia da Saudade, onde, segundo Othon/Steinbeck, as casas dos pescadores “mostravam janelas besuntadas de azul, com uma data no alto, ranchos esguios, baixos, cobertos de telhas salitradas — e canoas que cheiram a algas e tintas frescas”.
Coqueiros, Praia Clube, pátrias de uma república feliz, quebrando na areia fina da lembrança.