13 ago Crianças no tráfico de borboletas
Neste aniversário de cinco ano do site O Eco conto uma história de como um jornalismo sério combinado com a força da internet foi capaz de acabar de vez com uma agressão contra a natureza praticada há décadas na região norte catarinense.
Quando eu era criança, passava as férias na casa da minha avó, na área rural de Papanduva (SC), localidade de Passo Ruim. Certa vez, apareceu uma novidade por lá, que me foi apresentada pelas crianças da comunidade: caçar borboletas azuis (Morpho Aega) para vender suas asas a um comprador de Papanduva. Ele, por sua vez, as revendia para outros intermediários até chegar nas mãos de artesãos e indústrias nos grandes centros urbanos, que as utilizavam na decoração de quadros e bandejas.
A cobiçada borboleta azul, ou “azulinha” como o pessoal chama por lá, é comum de ser encontrada onde tem taquara, uma espécie de bambu que coloniza rapidamente as clareiras de áreas preservadas onde houve derrubada de árvores para retirada de madeira. É que a lagarta da borboleta azul se alimenta especificamente das folhas da taquara (bambus, em geral).
Então, inocentemente, eu acompanhava a criançada de Papanduva, que tinha a minha idade, na captura das borboletas nos taquarais e também ia com eles no final do dia até a casa do comprador no centro da cidade, que fazia a alegria de todos com o pagamento de algumas moedas pelo resultado da caçada.
As borboletas eram capturadas com aqueles coadores feitos artesanalmente com um aro de arame e o tecido branco de malha bem fina e transparente usado para proteger do sol os canteiros de mudas de fumo, semelhante ao véu de noiva. Após serem mortas, esmagando e removendo a cabeça e o abdômen, as asas eram cuidadosamente armazenadas numa caixa de sapato e assim levadas ao comprador.
Anos depois, fui compreender o motivo de não haver mais borboletas azuis nas matas próximas do centro Itaiópolis (SC), município vizinho de Papanduva, pois eram áreas de mata nativa e com muitos taquarais, o mesmo tipo de ambiente do entorno da casa de minha avó. É que ali as borboletas já haviam sido extintas. Foram caçadas até o extermínio antes de eu nascer, na década de 60. Um poema de Olavo Bilac, escrito há mais de 100 anos, já abordava este problema.
No início dos anos 90, a Elza e eu fomos conhecer um terreno que recebi de herança de meu pai, uma área preservada às margens do rio Itajaí, em Santa Terezinha (SC). Um morador do entorno foi gentilmente nos mostrar o terreno. Seguindo a trilha pelo meio da mata, que eles usavam para pescar no rio Lajeado, de repente, chegamos a uma clareira, parecida com a pista de um aeroporto, que tinha uns 10 metros de largura e quase 100 de comprimento. Ficava bem no meio do taquaral e sua construção (dentro do nosso terreno, obviamente) implicou até na derrubada de algumas árvores centenárias, cujos troncos foram serrados rentes ao solo. Meio sem jeito, o morador explicou que se tratava de um local para caçar borboletas!!!
Fiquei muito surpreso, achava que esta atividade já havia sido extinta. Afinal, com toda esta divulgação dos problemas ambientais, ninguém seria cafona de querer decorar sua sala com um objeto feito de partes de animais ameaçados de extinção caçados na natureza, como aquelas molduras contendo frases de letras construídas de pedaços de asas de borboletas mortas cruelmente com os dizeres “Deus Abençoe Este Lar”.
Dez anos mais tarde, em 2000, estávamos desenvolvendo nas escolas de Santa Catarina o projeto patrocinado pela Fundação O Boticário de popularização dos anfíbios da Mata Atlântica e durante a palestra da Elza na Escola de Educação Básica “Odir Zanellato”, no bairro Lucena, em Itaiópolis (SC), uma professora perguntou se não era crime capturar borboletas no mato e nos revelou um problema muito grave.
Estavam aliciando as crianças pobres para capturar borboletas em áreas preservadas na área rural de Itaiópolis. Bem cedo, colocavam as crianças pobres (meninos e meninas) em Kombis velhas e as conduziam até os matagais. Vocês imaginem a situação de perigo a que ficavam expostas as meninas, por exemplo. Totalmente indefesas, no meio do mato, na companhia de adultos que poderiam ser estranhos.
O resultado disso é que a atividade estava causando uma evasão escolar de até 30% em algumas turmas. Pois as crianças faltavam às aulas para passar o dia inteiro no mato caçando borboletas e, assim, gerar renda para a família. A estratégia das professoras seria resolver o problema usando a lei dos crimes ambientais para pegar os aliciadores.
Tendo noção da dificuldade de se combater os crimes ambientais na época, haja vista a quantidade e gravidade dos casos, optei pelo caminho oposto. Imaginem que chance teria uma denúncia sobre crianças pegando borboletas no meio de mais de mil outras denúncias para serem apuradas só de desmatamento, algumas de centenas de hectares. Muito embora a extinção de uma única espécie, não importa que seja uma borboleta, seja a longo prazo tão grave quanto o desmatamento.
Como estava muito na moda se falar no problema da evasão escolar, tentei resolver o problema denunciando o aliciamento das crianças. Mas não deu resultado. Foi aí que eu entendi porque as professoras estavam tentando a estratégia de usar a lei dos crimes ambientais para salvar o futuro daquelas crianças pobres.
Passado alguns meses, li no jornal “A Notícia”, o maior de Santa Catarina, uma matéria sobre uma feira ambiental que trazia um exemplo do uso “sustentável” da biodiversidade, mostrando os famigerados quadros fabricados com asas de borboletas (artesanato). É lógico que não se deixou de mencionar que as eram provenientes de um criatório autorizado pelo IBAMA. Eram borboletas obtidas de forma “ecologicamente correta”, como se diz por aí.
Então, não me restou alternativa senão usar a internet para demonstrar minha indignação. Contei a história acima pelos quatro cantos e pelas listas de discussão. Quem mais se sensibilizou com a história foram os protetores dos animais do Rio de Janeiro, participantes da lista de discussão Defesa dos Animais, que já tem 10 anos.
O jornal “A Notícia” ficou assustado com o volume de e-mails de protesto pela matéria (fenômeno da internet ainda pouco conhecido na época). Deu o maior rebu e a diretoria convocou uma reunião de emergência com editores e repórteres. Publicou algumas das cartas como a de Andréa Lambert na edição do dia 13/07/2000.
Logo em seguida, o jornal me procurou e queria mandar uma equipe de reportagem para Itaiópolis (SC), para ver de perto o problema. Naquela época, tinha um jornalista especializado em cobrir o meio ambiente, Luis Fernando Assunção.
Fizeram uma das melhores matérias que eu já vi. Que deve ficar para a história. Foi publicada na edição de capa de domingo de 06/08/2000 e um resumo pode ser visto na internet. A foto abaixo ilustrou a capa.
Conseguiram chegar até nos compradores, que as próprias crianças denunciaram para a equipe de reportagem. As crianças recebiam R$ 0,07 pela borboleta azul e R$ 0,02 pelas outras espécies. Os intermediários vendiam a borboleta azul por pelo menos R$ 3,00, ou seja, recebiam 43 vezes mais do que as crianças. Um negócio altamente lucrativo, mesmo para uma atividade ilegal. Bota exploração de mão de obra infantil nisso.
Vocês perceberam por que usam crianças nesta atividade e não adultos? Nos lugares bem preservados, com abundância de borboletas azuis, com muita sorte podem ser capturadas no máximo umas 30 borboletas azuis por dia. Isto dá uma renda de R$ 0,07 x 30 = R$ 2,10 por dia. Nós, brasileiros, deveríamos ter vergonha pelo que fazemos com as nossas crianças e com a natureza.
Vocês já devem ter lido alguma matéria jornalística sobre um crime monstruoso, por exemplo, contra uma criança indefesa envolvendo abuso sexual, assassinato e todas estas atrocidades cometidas pelos seres humanos. Certamente vocês jamais encontraram nestas matérias uma frase sequer favorável ao criminoso, como se este tipo de crime tivesse algum motivo moralmente aceito para praticado. Mas nas matérias sobre as agressões contra a natureza é comum ser colocado o que os jornalistas chamam de “o outro lado”. Só que nesta matéria do Luis Fernando Assunção isto não aconteceu. Foi totalmente favorável à natureza, às borboletas no caso.
O efeito dessa reportagem foi fulminante. Cessou imediatamente a captura e o tráfico de borboletas. Os compradores e intermediários se debandaram. E, pelo jeito, foi para sempre. Já se passaram quase dez anos e não há indícios de que alguém esteja capturando borboletas em Itaiópolis ou qualquer outro município do planalto norte catarinense.
A repercussão da matéria foi muito forte na internet em todo o país e, três dias depois, a Folha de São Paulo também publicou sua versão, com a matéria de Kiyomori Mori, intitulada “Asas do Desejo”. Foi interessante porque eles entrevistaram os donos de criatórios e lojas da capital paulista que comercializam suvenires confeccionados com asas de borboletas.
Nesta reportagem da Folha, uma comerciante disse que não via problemas no uso de asas de borboletas em artesanato já que elas morrem mesmo. E tinha outro argumento de que a borboleta azul só vive quatro meses e abreviar sua vida não seria falta de ética. Mas partiu da dona de um criatório autorizado do interior de São Paulo a declaração socioambientalista mais surpreendente: “Miami, São Paulo e Rio de Janeiro são nossos mercados”, conta. “Muitos criticam nosso trabalho, mas, se as borboletas ficassem na natureza, os predadores comeriam. Além disso, doamos casulos para escolas.”
Esta história é um bom exemplo de como os meios de comunicação e esta revolução com o surgimento da internet podem ser usados para melhorar o nosso país e salvar o que resta de nossos ecossistemas com sua riquíssima biodiversidade. E vamos lutar para que as borboletas fiquem na natureza e nunca falte comida para os predadores (como os passarinhos, os sapos…) indispensáveis para o processo de seleção natural.
(O Eco, 11/08/2009)