02 out O exercício de criar futuros sustentáveis
Parece haver um consenso entre especialistas de que as universidades ainda não estão preparando profissionais em quantidade e com competências suficientes para enfrentar os desafios globais da sustentabilidade. Prova disso é que os mais brilhantes cérebros da atualidade não têm conseguido desenvolver modelos econômicos, políticos e científicos eficientes para a solução de questões complexas como, por exemplo, as mudanças climáticas ou as desigualdades sociais.
Segundo Jane Nelson, diretora do Centro de Iniciativa para Responsabilidade Social Empresarial da Universidade de Harvard, o sistema formal de ensino não evolui na mesma velocidade com que ocorrem as mudanças na sociedade. “Há cerca de seis anos, o aquecimento global não tinha o destaque de hoje. Foi só nos últimos dois anos que o mundo acordou para o problema. Mas a maioria das universidades ainda não dispõe de programas de pesquisa e aulas voltadas para as mudanças climáticas. Não há especialistas suficientes para dar conta dessa tarefa porque se trata de um campo totalmente novo. Cientistas, políticos e empresários estão tendo que aprender à medida que trilham o caminho”, ressalta Jane.
As instituições de ensino não estão sozinhas nesse desafio. Formar profissionais capacitados para enfrentar os desafios da sustentabilidade é uma tarefa a ser compartilhada com as empresas. No entanto, há uma confusão acerca do papel de cada um desses segmentos da sociedade e sobre como eles podem unir esforços na formação dos indivíduos. Esta é a opinião de Ricardo Young, presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social.
“As organizações entendem que precisam ser espaços de aprendizado permanente, produtores de saberes e de inteligência. Por isso, criam suas universidades corporativas. Do outro lado, as universidades refletem sobre a sua função na sociedade e chegam à conclusão de que precisam formar pessoas para o mercado. Aí o que elas fazem? Tecnicizam a educação e repassam a alma para a segunda ou terceira prioridade no processo educacional. Assim, temos um belo diálogo de surdos e mudos: empresas que querem aprender, buscando emular o papel da universidade e universidades que querem servir ao mercado emulando empresas e se despindo da sua função tradicional e educadora”, contextualiza Young.
No livro “Higher education and the challenge of sustainability” (Educação superior e o desafio da sustentabilidade, ainda sem tradução para o português), Peter Blaze Corcoran e Arjen E.J. Wals defendem que a sustentabilidade, mais do que assunto adicional no já sobrecarregado currículo, representa a oportunidade de abertura para uma visão diferente das disciplinas, da pedagogia, da mudança organizacional e, particularmente, da ética.
Jane, de Harvard, endossa a opinião dos dois autores. “As escolas de negócio e as empresas devem criar um sistema de ensino que favoreça a compreensão dos sistemas globais, desenvolva o pensamento sistêmico e a capacidade de reconhecer, identificar e valorizar a interdependência. Esse sistema precisa estimular o empreendedorismo, a inovação, a liderança e a convergência de saberes entre os diferentes segmentos da sociedade”, ressalta.
Transformação de modelos mentais
Como desencadear esse processo de mudança no ritmo exato com que se apresentam os desafios relacionados à sustentabilidade constitui um grande dilema para pesquisadores, especialistas e empresas.
Em busca de respostas, um grupo de pesquisadores da Society for Organizational Learning (SOL), entrevistou líderes de diferentes segmentos para saber que fatores determinaram, de modo específico, o seu aprendizado. A organização foi fundada pelo consultor Peter Senge, o famoso guru da gestão do conhecimento, como forma de dar continuidade aos trabalhos de aprendizagem organizacional iniciados no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
As conclusões desse estudo resultaram no livro Presença – Propósito humano e o campo do futuro, escrito a oito mãos por Peter Senge, Otto Scharmer, Joseph Jaworski e Betty Sue Flowers. Os especialistas perceberam que as grandes descobertas eram quase sempre conseqüência de um momento de introspecção e ruptura com padrões e pensamentos pré-concebidos.
“Após uma bateria de 150 entrevistas com executivos, pesquisadores e cientistas chegou-se à conclusão de que os grandes insigths de inovação na vida dessas pessoas estavam relacionados a um exercício radical de autoconhecimento e percepção, tarefa para a qual precisaram abrir mão do que já sabiam. Da sensação de colocar-se disponível surgiram novas formas de ação, novos produtos e abordagens para a própria empresa ou para uma teoria científica”, explica Maria Cristina d’Arce, coordenadora da Society for Organizational Learning Brasil.
Juntos, os autores criaram a chamada Teoria U que propõe uma fonte mais profunda de aprendizagem associada à capacidade de “presenciar”, isto é de sentir, de perceber intimamente e de se integrar ao objeto proposto pela mudança. Essa habilidade decorre de um estado de mente, coração e vontade francamente abertos para a possibilidade de aprender não apenas usando a experiência anterior, mas a partir da construção prática de uma visão de futuro.
“A transformação dos modelos mentais está na essência da Teoria U. Ela sugere o mergulho em um espaço muito profundo de percepção e a abertura para o futuro que deseja emergir. Isso não é exatamente o que está no modelo mental, mas sim algo que decorre das descobertas proporcionadas pelo movimento de descida do U”, afirma Cristina d’Arce.
Na opinião dos criadores da Teoria U, enfrentar os desafios atuais exige das pessoas parar de “fazer download” de antigos padrões. Isso significa deixar de reafirmar julgamentos habituais para desacelerar e aprender a escutar de forma mais profunda, aberta e coletiva, a fonte suprema de toda a grande liderança – sua autoconsciência e autoconhecimento. “Em um mundo complexo, no qual a colaboração intersetorial e a inovação constituem fatores de sobrevivência, não existe liderança possível se não houver um profundo processo de autoconhecimento”, concorda Young, do Instituto Ethos.
A grande novidade da teoria não está, como pode parecer, no processo de introspecção individual, bastante comum nas diferentes tradições, mas na apropriação coletiva do objeto da mudança para alcançar a inovação social. Segundo Cristina, esse processo costuma se observar nas jornadas de aprendizagem, em que grupos de pessoas são convidados a refletir sobre uma determinada questão, tomando contato com a realidade e buscando respostas a partir de experiências e descobertas conjuntas.
“A mesa do escritório é o pior lugar para olhar o mundo. A experiência da descida do U precisa ser vivenciada em jornadas de aprendizagem. Por meio delas, mergulha-se em uma determinada realidade, sem julgamentos, convive-se com outras pessoas de modo que a inteligência que vai brotar não é individual, mas coletiva”, destaca Cristina.
“Depois de desacelerar, escutar e sentir, o próximo passo na descida do U é fazer o que chamamos de prototipar, que significa concretizar as possibilidades futuras, transformando intenções em ações. Quando a pessoa deixa de agir a partir do seu downloading, emerge um outro universo sobre o qual ela jamais tinha pensado. Assim o futuro surge a partir dela mesma”, explica Cristina.
Teoria U nos negócios
Apesar de se escorar em métodos à primeira vista distantes da realidade de negócios, como, por exemplo a mentalização, a teoria U está longe de ser apenas filosófica. Na publicação “Adressing the blind spot of our time”, Otto Scharmer relata experiências de implementação da Teoria U em empresas ao redor do mundo.
A partir do aprendizado do U, corporações importantes estão buscando, por exemplo, formas de tornar a produção de alimentos mais sustentável. Carrefour, General Mills, Nutreco, Organic Valley Cooperative, Rabobank, Costco, US Food service, Sysco, Unilever e a brasileira Sadia compõem o Sustainable Food Lab. O grupo conta ainda com o apoio da International Finance Corporation (IFC), ligada ao Banco Mundial, e de organizações não-governamentais como o World Wildlife Fund (WWF) e The Nature Conservancy para estimular inovações na cadeia produtiva de alimentos, o aumento da demanda por produtos sustentáveis, mudanças nos padrões de consumo e políticos.
A Shell também se utilizou de alguns elementos da teoria U em uma de suas unidades na Holanda. Lá, a planta industrial vinha enfrentando problemas em seu processo produtivo, atribuídos à implementação de um novo software SAP. Depois de uma série de entrevistas com os funcionários, percebeu-se que a origem dos problemas era, na verdade, o descontentamento com o clima organizacional. Ao invés de buscar novas metas especificamente de negócios, a corporação optou por criar um ambiente favorável ao aprendizado e à inovação. A mudança na cultura organizacional acabou sendo o elemento-chave para a melhoria dos indicadores de desempenho.
Como criar futuros desejados, segundo a Teoria U
-Parar o downloading, desacelerar e escutar:
Acessar um nível refinado de escuta chamado Escuta Generativa, que permite a conexão com o campo emergente de possibilidade futura
-Sentir:
Ir a lugares, conversar com pessoas, ficar em contato com os problemas à medida que se desdobram
-Aquietar-se:
Conectar-se com uma fonte mais profunda de potencial e possibilidades pessoais e permitir que elas emerjam
-Cristalizar visão e intenção:
Manter conexão com a fonte de intenção a fim de gerar um forte compromisso
-Prototipar e desempenhar:
Prover soluções, protótipos para as necessidades reais, em tempo real.
(Juliana Lopes, Envolverde/Revista Idéia Socioambiental, 02/10/2008)