18 ago A cidade no tabuleiro
O Mercado Público fará, em fevereiro de 2009, 110 anos de vida e sorte, e está fazendo três anos de convalescença do incêndio que destruiu sua Ala Norte – uma restauração esteticamente sofrível, mas palatável pela “alma” ilhoa, que não suportaria a amputação de um dos braços da Casa Amarela.
Os cheiros do Mercado estão indelevelmente entranhados em cada poro, em cada milímetro do tecido de cada ilhéu, como se fosse uma escama de peixe. Se algum turista quiser conhecer, em alguns minutos, a cidade e o seu DNA, é só deixar-se ficar dentro do Mercado, vendo a vida passar.
Desde os tempos em que fazia ponto na Praça XV, baixos do Miramar, ou depois que se mudou para o largo anexo à Alfândega, o mercado sempre foi esse sortido tabuleiro de “vivos” e “víveres”, esta miscelânea de sons, cores, cheiros e mesas para os frutos do mar e a arte popular.
A casa é o palco vivo da alma nativa, colorida pelos alhos rosados, pimentões verdes e vermelhos, tomates, beringelas, abobrinhas, aspargos, cogumelos silvestres, acelgas, alcachofras, marmelos, abóboras, beterrabas, ervas doces, azeitonas verdes e negras, carnes, embutidos e peixes de todos os matizes. Do “gris” puro ao cinza esbranquiçado, do róseo dos salmões até o amarelo-ouro das ovas. Uma festa dos sentidos, uma aquarela de cores, uma extensão do mar e de seus frutos. Uma feira de aromas tão “característica”, que hoje se poderá assegurar ser “aquele” o cheiro do ilhéu. Como “aquele” era o cheiro de Jean-Baptiste Grenouille, a criatura-olfato do romance de Patrick Süskind, O Perfume.
O velho Mercado ancorava suas bancas no sopé da Praça XV, mais ou menos ali onde se encontra o Castelinho Amarelo da Casan. Implicaram com o local e com os seus cheiros, argumentando que “não ficava bem” um mercado logo ali na boca da Praça, na sala de visitas da cidade.
Ora, o local era perfeito. Com um mínimo de asseio, a Casa Amarela poderia ter continuado ali mesmo, pois o cheiro de um mercado é o cheiro da sua gente. A mudança, diga-se, não prejudicou o comércio de gêneros, nem o ponto de encontro entre pessoas, hábitos, costumes e folclores.
É ali, naquele ponto mediterrâneo da cidade, que se processa e se aperfeiçoa, todos os dias, a “fotossíntese” do viver ilhéu.
A única e lamentável ausência é a do mar, batendo no antigo cais de “desova” dos peixes, ancoradouro das canoas bordadas e coloridas, que chapinhavam no trapiche daquela feira de sons e cores. Do alto de suas torres amarelas, 110 anos de cheiros e temperos nos contemplam.
Ave!
(Sérgio da Costa Ramos, DC, 18/08/2008)