23 jun A cidade dos meus sonhos
Do Blog de César Valente (De Olho na Capital, 21/06/08)
Daqui a pouco esta nossa cidade vai ser novamente agitada por uma campanha eleitoral para prefeito e vereadores. Temo que mais uma vez irão todos brandir os temas que suas pesquisas de última geração disseram que nós queríamos ouvir e de novo estaremos diante de nomes, criaturas, pessoas, com grandes projetos pessoais, numeroso séquito e enormes sorrisos. Provavelmente não teremos diante de nós, como não tivemos nas outras vezes, um projeto claro para as múltiplas cidades que cada um de nós tem em seus sonhos.
Há, com certeza, muita coisa, nas cidades de cada um de nós, que é comum a todas. É possível que muitos de nós queiramos um sistema amigável de transporte coletivo. As ruas são estreitas, as distâncias não são muito longas, deveria ser possível vez ou outra, para um trajeto ou outro, usar ônibus, bonde, barco ou trem, em vez de automóvel. E sentir-se bem servido e pagar um preço justo. Também deveria ser possível, a quem não tem veículo próprio, locomover-se pela cidade sem perder todas as horas do seu dia nem deixar nas catracas parte substancial de seu mirrado salário.
É uma ilha tão bonita, pelas janelas altas dos ônibus vê-se tão bem as paisagens mais famosas, que o transporte coletivo deveria ser mais fácil de usar. A cidade ficaria mais civilizada. Toda cidade legal e charmosa, se a gente prestar atenção, tem um transporte público eficiente e barato. A cidade que eu sonho tem essa facilidade, que é também uma liberdade pública.
Também pode ser que, naquela imagem utópica de cidade que temos em cada um de nossos corações, se encontre, em quase todas, um controle do uso do espaço horizontal e vertical. Um prédio que sobe desmesuradamente, não rouba só aqueles metros quadrados que ocupa no solo. Ocupa a paisagem, bloqueia a visão, provoca sombra.
Um prédio que abrigará centenas de habitantes, dezenas de automóveis, não deveria poder ser construído em ruelas que foram abertas para servir a meia dúzia de casas, habitadas por dezenas de pessoas, por onde circulavam, com alguma folga, duas charretes, o entregador de leite e seu cavalo baio, depois substituído por uma bicicleta e as crianças indo e vindo para o grupo escolar.
E estão já construídos, nessas mesmas ruelas estreitas, dezenas desses prédios. Sair e voltar de casa, em tantas e tantas regiões, é exercício de paciência. Onde as duas charretes paravam para que seus condutores conversassem por horas sem que ninguém mais aparecesse para usar a rua, hoje circulam a cada hora centenas de automóveis de moradores do local, dezenas de caminhões de entregas, dúzias de ônibus. E a única diferença é que agora a rua é asfaltada. E um pouco mais estreita, porque foram construídas calçadas.
O uso do solo numa ilha é coisa que deve ser tratada cientificamente. Cuidadosamente. Parcimoniosamente. Avaramente. Amorosamente. Não dá para aceitar níveis de adensamento urbano acima de determinados limites. Nas nossas cidades de sonho, os vereadores são eleitos por nós para defenderem essa cuidadosa ocupação, estabelecer limites, negar concessões duvidosas.
Nas cidades reais, parece que os vereadores têm suas campanhas financiadas por aqueles que precisam deles para defender uma ocupação máxima, para derrubar limites, ampliar cotas, aprovar concessões de todo tipo. O que a gente assiste, em geral, não desmente essa tenebrosa impressão.
Também imaginamos que, se fossemos poderosos donos do mundo, faríamos a cidade ser acolhedora e segura. Durante tanto tempo nos orgulhamos dos nossos morros, com suas casinhas coloridas de madeira e alvenaria. Não eram e não são favelas como as conhecem tantas outras cidades. Alguma coisa mais efetiva do que colocar barreiras, bloquear passagens, estigmatizar as pessoas por zona de moradia, deveria ser feita para proteger-nos a todos. Tarefa difícil e complicada (tudo é assim, nas cidades de hoje), a inclusão social e o controle das transgressões, não pode ser entregue só à polícia.
A segurança pública é responsabilidade coletiva porque, se das conseqüências se ocupam o médico legista e o coveiro, das causas deveríamos todos cuidar. Geralmente quando sonhamos nossas cidades e chegamos nesta parte, o sonho vira pesadelo. Porque não há soluções rápidas, fáceis e duradouras. Alguns de nós até acordam assustados e preferem não continuar sonhando. E candidatos preferem não falar nisso nas campanhas municipais, porque a segurança, formalmente, é com os governos estaduais e federais. Mas é preciso enfrentar esse pesadelo. Porque ele ocorre na nossa cidade. Nas nossas ruas. Na casa do vizinho.
Acho que só esses poucos itens já ajudariam a tornar mais parecida a cidade que temos em nossa imaginação com a cidade onde circulamos todos os dias. Tomara que saibamos escolher, que os candidatos saibam nos respeitar e que saibamos, não só na época das eleições, acompanhar, cobrar, pressionar. Porque uma cidade de sonho não se torna realidade sem esforço.
[Crônica publicada em 19/5/2004. Republico-a agora porque estamos às vésperas de nova eleição municipal e esses sonhos ainda não foram realizados.]