Projeto valoriza a vida rural promovendo o turismo em SC

Projeto valoriza a vida rural promovendo o turismo em SC

Nada simboliza melhor a prosperidade e o poder no mundo dos negócios do que empresários se deslocando a bordo de aeronaves particulares ou carros de luxo para visitar propriedades ou prospectar oportunidades.
A catarinense Thaise Guzzatti não conta com facilidades desse tipo. Ela sacoleja por estradas esburacadas em carros velhos, dirigindo quando pode ou se valendo da ajuda de amigos voluntários para guiar e de almofadas para segurar, até semanas atrás, o barrigão de nove meses de gravidez. Agora o bebê nasceu.
Apesar da precariedade logística, Thaise é muito bem-sucedida em sua atividade. A diferença é que, diferentemente do que move empreendedores convencionais, seu objetivo não é o resultado financeiro: seu negócio é social. Nesse segmento, os ganhos são contabilizados não por lucros e dividendos, mas por indicadores como geração de renda, inclusão social e manutenção de tradições e costumes.
Thaise, de 32 anos, é a fundadora da Associação Acolhida na Colônia, uma ONG de promoção do agroturismo – a exploração do turismo em pequenas propriedades rurais com o objetivo de manter as famílias no campo e ampliar sua renda. Atualmente 150 famílias no interior de Santa Catarina participam da rede formada por Thaise, oferecendo hospedagem, refeições, passeios ou vendendo itens produzidos localmente.
Recentemente o Ministério do Turismo selecionou a ONG para o programa Destinos Indutores, o que a torna uma referência nacional em turismo rural. Thaise já recebeu reconhecimento internacional. Em outubro de 2007, foi apontada pela revista World Business, da escola de negócios Insead, como uma das 35 mulheres com menos de 35 anos com algo especial para oferecer ao planeta.
É a única brasileira da lista, da qual também fazem parte a ambientalista colombiana Catalina Cock Duque, fundadora da Associação pela Mineração Responsável, e a egípcia Raghda El Ebrashi, criadora de uma organização que oferece microcrédito e treinamento para mulheres empreendedoras.
O projeto de Thaise promove transformações em municípios sujeitos ao êxodo rural. Segundo dados do governo federal, 1% da população rural catarinense abandona o campo todos os anos. O êxodo é maior entre os jovens. A Fetaesc, entidade que representa os trabalhadores rurais no estado, estima que em 30% das propriedades não há filhos residentes.
“Já não estaríamos mais aqui se não fosse pelo turismo”, diz o catarinense Gabriel Rieg, de 55 anos, que junto à mulher, Marilda, mantém uma propriedade de 71 hectares nas montanhas de Anitápolis. Integrantes da rede Acolhida na Colônia, o casal recebeu 730 pessoas no ano passado e obteve com isso uma renda extra mensal de R$ 1 mil.
O agricultor Valnério Assing, de 48 anos, morador do município de Santa Rosa de Lima, também participa do projeto. Ex-produtor de fumo, ele estava de malas prontas para tentar a sorte em São Paulo quando conheceu a ONG. Sua estufa de fumo foi convertida em pousada e seu galpão, em sala de jantar.
Hoje Valnério e sua mulher, Leda, estão entre os anfitriões mais conhecidos do circuito das Encostas da Serra Geral. No ano passado, quase 4 mil pessoas visitaram as propriedades ligadas à Acolhida na Colônia em Santa Rosa de Lima.
Foi em meados dos anos 90, quando estudava agronomia na Universidade Federal de Santa Catarina, que Thaise teve o primeiro contato com o ambiente rural de seu estado. Filha de comerciantes, ela ambicionava, na época, montar uma floricultura. Um estágio obrigatório no campo, porém, fez com que despertasse para outras possibilidades.
Thaise viveu por um mês com uma família da área rural do município de Seara, no oeste catarinense. Era um mundo estranho à jovem que jamais tinha visto uma lavoura de perto ou ordenhado uma vaca. Nesse estágio, conheceu as dificuldades de uma vida sem direito a dia de descanso. “Era impossível passar por uma experiência como aquela sem que algo mudasse em mim”, diz Thaise. “Foi uma vivência decisiva para o meu novo rumo pessoal e profissional.”
Ao final do curso, em 1997, imbuída do propósito de melhorar as condições dos agricultores, Thaise fez um estágio na França a convite do Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro). Lá conheceu a Accueil Paysan, organização cujo objetivo é valorizar o modo de vida no campo por meio do turismo ecológico. De volta ao Brasil, como coordenadora do programa de agroturismo do Cepagro, arquitetou a Acolhida na Colônia nos moldes do programa francês.
Começou com cinco municípios – Anitápolis, Santa Rosa de Lima, Rancho Queimado, Rio Fortuna e Gravatal. A região era ideal porque já havia ali uma associação destinada a produzir e beneficiar alimentos orgânicos, o que estava em sintonia com as idéias que Thaise pretendia implementar. Dentre os princípios norteadores estavam a formação de redes solidárias e a valorização de mulheres e jovens. “Para pequenos municípios rurais, é difícil sair da inércia trabalhando de forma isolada”, diz ela. “O agroturismo só é viável quando construído sobre uma base associativa.”
Após a fundação da associação, em 1999, Thaise deixou o Cepagro para se dedicar integralmente à Acolhida. Adaptou o conceito europeu às condições locais e criou uma tecnologia que inclui normas de funcionamento e metodologia de implantação. Esse arcabouço determina o que uma propriedade deve oferecer ao turista, norteando os investimentos dos agricultores (que não devem ser grandes, já que a idéia é aproveitar a estrutura existente) e a qualidade dos produtos e serviços.
No início, suas idéias foram recebidas com desconfiança pelos principais interessados, os agricultores. Havia pouca abertura para novidades – e a proposta implicava o convívio com desconhecidos e o aumento da carga de trabalho.
“A capacidade de Thaise para envolver as pessoas foi importante para que o projeto desse certo”, diz Murilo Xavier Flores, presidente da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri). “Os agricultores jamais se lançariam numa atividade desconhecida como o turismo se não confiassem plenamente nela.”
O agroturismo é uma alternativa de lazer diferente e pode não agradar ao turista convencional. O acesso às propriedades é precário, as instalações são simples, não há TV nos quartos ou sinal de celular. Compartilhar o estilo de vida dos agricultores é parte do programa. O visitante convive com a família que o hospeda e tem sua companhia nos passeios.
Também pode acompanhar a faina diária nas lavouras e junto às criações. Uma das regras para integrar a rede é ser um agricultor em plena atividade. Os alimentos servidos devem ser orgânicos e produzidos no local, sempre que possível. O número de visitantes é limitado e cuidados ambientais são essenciais: todas as nascentes têm de ser protegidas e o esgoto, tratado.
A exuberância da natureza foi o que mais agradou ao professor Messalas Kriger, de Florianópolis, que visitou a propriedade de Gabriel e Marilda Rieg em Anitápolis. A maior parte da área é preservada e há dez cachoeiras. O sítio provê 90% dos alimentos que a família e seus hóspedes consomem. Kriger também se impressionou com a hospitalidade.
“Cheguei à meia-noite, a temperatura estava abaixo de zero e fui recebido pelos donos, que prepararam pizzas, sopas e serviram vinho”, diz. A dedicação fez o negócio prosperar. Gabriel e Marilda acabam de aplicar R$ 15 mil, financiados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, para erguer dois chalés no alto de uma colina, o que permitirá ampliar a capacidade de hospedagem.
Como todo empreendedor social, Thaise gosta de dizer que a Acolhida na Colônia não é uma obra pessoal. “Agricultores, técnicos, turistas, amigos da cidade, todos têm grande parcela de mérito”, afirma. Ela já não possui um cargo formal na associação, mas ainda é responsável por levantar recursos para melhorar e expandir o projeto (há demanda para levar a rede para outros municípios catarinenses e para a Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro).
No governo federal, firmou parceria com os ministérios do Turismo, Desenvolvimento Agrário e Meio Ambiente, que apóiam financeiramente algumas atividades. Órgãos do governo catarinense fornecem recursos e infra-estrutura para treinamento de pessoal e expansão da rede. No setor privado, um dos projetos mais recentes envolve a área social da Bovespa para a implantação de um circuito agroturístico de energias renováveis. “Hoje a Acolhida na Colônia é uma marca respeitada e uma de minhas atribuições é defendê-la”, diz Thaise.
Mãe de Beatriz, de 4 anos, e de Thiago, que nasceu em março, Thaise é uma mulher ocupada. Concilia família com as inúmeras viagens, um curso de doutorado, aulas que ministra em duas cidades e a colaboração com outras organizações. O trabalho se intensificou a partir de 2007, quando se tornou bolsista da Ashoka, uma organização internacional destinada a apoiar o empreendedorismo social.
Na Acolhida, ela também é responsável por mediar conflitos, função essencial numa rede que prima pela participação coletiva. Um dos mais recorrentes envolve dinheiro. Há associados que possuem instalações acima da média e querem aumentar o preço das diárias. Acontece que o preço é único: R$ 55, refeições incluídas. Thaise entende que deve ser assim, para que o agroturismo seja acessível e a coesão da rede seja mantida.
Ela também acompanha de perto a vida e os problemas das famílias participantes. Em janeiro, visitou a propriedade de Leda e Valnério Assing, em Santa Rosa de Lima. Ficou abalada quando soube que um dos filhos do casal resolvera trabalhar em São Paulo, exatamente o que seus pais evitaram há uma década.Isso contraria o objetivo da Acolhida, que é dar sustentabilidade para que as famílias se mantenham no campo. “Nessas horas eu balanço, mas olho para tudo o que já foi feito e reforço minha crença no projeto”, diz Thaise.
Os resultados obtidos em 2007 alimentam sua confiança. Quatro novas associações foram criadas, envolvendo mais de 100 propriedades. Até uma colônia de pescadores passou a integrar a rede, dando mostra da possibilidade de replicação do projeto.
“Dezenas de famílias de nossa região transformaram suas propriedades em pousadas rurais e já conseguem renda extra sem abandonar suas atividades tradicionais”, diz Edegold Schäffer, presidente da ONG Associação de Preservação do Meio Ambiente do Alto Vale do Itajaí (Apremavi). A Alto Vale é uma das frentes de expansão da Acolhida. No futuro, Thaise pretende levar seu projeto para outros países da América Latina. “O importante é que o turismo de base comunitária se amplie”, diz ela. “Não sei se isso acontecerá com a bandeira da Acolhida na Colônia ou não.”
TURISMO SOLIDÁRIO

Como é o trabalho da Associação Acolhida na Colônia

MODELO>>>A ONG promove o agroturismo. Os agricultores se organizam, hospedam visitantes em suas propriedades, servem refeições, compartilham seu modo de vida e oferecem atividades diversas
IMPACTO SOCIAL>>> Envolve 150 famílias em 30 municípios de Santa Catarina. A renda obtida pelas famílias – entre R$ 1 mil e R$ 2 mil mensais – dá meios para se sustentarem no campo
IMPACTO AMBIENTAL>>> As propriedades trabalham com agricultura orgânica. A beleza natural e os cuidados com a preservação ambiental (como a proteção das nascentes e o tratamento do esgoto) são atrativos para os turistas
FINANCIAMENTO>>> Os recursos vêm de diversas fontes – fundações, empresas e órgãos do governo. Desde sua criação, o projeto já recebeu R$ 1,3 milhão
QUEM É THAISE COSTA GUZZATTI
IDADE:32 anos
NASCEU EM: Criciúma, SC.
MORA EM: Florianópolis
FAMÍLIA: Casada, tem 2 filhos: Beatriz, de 4 anos, e Thiago, recém-nascido
FORMAÇÃO: É engenheira agrônoma, mestre em engenharia de produção com ênfase em meio ambiente e faz doutorado em geografia
PROJETO: Fundadora da Associação Acolhida na Colônia, ONG que promove o agroturismo
RECONHECIMENTOS: Foi eleita pela revista World Business uma das 35 mulheres com até 35 anos de idade com algo especial para oferecer ao planeta. Sua ONG já recebeu prêmios da ONU e do Ministério do Desenvolvimento Agrário
POR QUE AGROTURISMO: “Ele permite que pequenos municípios rurais aumentem sua competitividade, dentro de uma perspectiva solidária”
(Revista Época, 14/04/08)