17 mar Lixo sem destino
Foi certeiro o cartunista Edgar Vasques ao jogar nos quadrinhos do clássico anti-herói Rango que o lixo é “maior produto da civilização ocidental”. Ele estava de olho na sociedade do consumo, que produz diariamente um Everest de resíduos de todos os tipos. Estimativas baseadas em dados oficiais revelam que até quatro bilhões de toneladas são coletadas por ano nos maiores países, só de resíduos urbanos e industriais, sem contar da mineração, construção civil e agropecuária. O Brasil tem seu quinhão no problema, e não é pequeno.
Em 2007, o País coletou 51,4 milhões de toneladas das 61,5 milhões de toneladas de resíduos urbanos que produziu. Se todo o lixo coletado segue para aterros certificados, as dez milhões de toneladas que restam para fechar a conta acabaram em lixões clandestinos, entupiram vias públicas e emporcalharam águas e matas. Os números foram revelados no último dia 6 de março pelo relatório anual da Abrelpe – Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública. A coleta diária nacional é de 141 mil toneladas de lixo urbano ou de quase um quilo por habitante.
Na avaliação da entidade, a construção e a demolição civis produzem 73 mil toneladas diárias de resíduos. Assim como para o lixo urbano, as regiões que mais contribuem são o Sudeste, Sul e Nordeste, seguidas por Centro-Oeste e Norte. E das 87 milhões de toneladas de lixo industrial geradas anualmente, pelo menos 3,7 milhões têm substâncias perigosas.
Sem destino correto, trazem problemas como o das 2.272 áreas contaminadas no estado de São Paulo, único com um cadastro público de locais contaminados. Lá está a maior cidade do País, que gera 13 mil toneladas de resíduos diariamente, sem contar os industriais. Desse total, 6,5 mil toneladas são da construção civil. Outro problema é a poluição de seus mananciais. Há quase 40 favelas no entorno da Represa Billings, uma das principais reservas d´água da metrópole, ao lado de Guarapiranga.
Hospitais, clínicas e outros estabelecimentos de saúde brasileiros descartam mil toneladas por dia. No entanto, pouco mais de três em cada dez quilos são tratados antes de chegar a aterros e lixões. O positivo, conforme a Abrelpe, é que o Brasil já tem capacidade (62% no Sudeste) para tratar até 590 toneladas diárias. Falta melhorar a coleta e o tratamento desse tipo de lixo.
Destino incorretoApesar de impressionantes, os números da Abrelpe mostram que a geração de resíduos ainda cresce lentamente no País. O calcanhar de Aquiles segue na destinação do lixo. Dos 5.564 municípios brasileiros, 3.593 (quase 65%) têm algum tipo de coleta seletiva. No entanto, só 2.158 (39%) enviariam seus descartes a aterros controlados e bem construídos. A situação é mais crítica no Nordeste, Centro-Oeste e Norte, região que concentra grandes mananciais e a retalhada Floresta Amazônica. Na capital federal, a coleta seletiva iniciou há poucos meses, de forma gradual.
Falhando em coleta e destinação de resíduos, o Brasil também desperdiça materiais que poderiam render dinheiro e empregos com a reciclagem. Há bons números sobre o reaproveitamento de latas de alumínio (94,4%), vidro (45%), garrafas PET (51,3%) e outros plásticos, embalagens de Tetra-Pack (24,2%), papel e papelão (49,5%) e até pneus.
No entanto, esses porcentuais tendem a se estabilizar sem novas medidas de incentivo e, pior, elevar a informalidade que alimenta os índices nacionais de reciclagem. Estima-se que cerca de 300 mil pessoas sobrevivam da coleta de latinhas de alumínio no Brasil. “Assim estamos estimulando muitas vezes um segmento de trabalho informal. O melhor caminho é responsabilizar também quem produz resíduos por sua coleta e destinação”, diz Alberto Bianchini, presidente da Abrelpe.
Lei atolada
Um gargalo para se encaminhar alguma solução ao problema do lixo nacional é a aprovação de uma lei de resíduos sólidos. Uma proposta tramita há 17 anos no Congresso Nacional. Nesse tempo, o maior movimento governista para fazer andar o Projeto de Lei (PL) 203/1991 esteve nas mãos do deputado Ivo José (PT-MG). No entanto, profundamente inspirado pelos desejos dos importadores de pneus usados, o relatório apresentado pelo parlamentar irritou o governo. Além disso, cerca de cem propostas de outros deputados foram apensadas ao texto.
A saída encontrada pelo governo foi encaminhar o Projeto de Lei 1991/2007. O novo texto segue ao ideário do Ministério do Meio Ambiente, trazendo estímulos ao uso de catadores de lixo e princípios como os do poluidor-pagador e da chamada logística reversa, o que incentiva o tratamento e reaproveitamento de materiais em novos produtos. “Sem regras mínimas, proliferam lixões e ações descontinuadas no setor. O looby da indústria tem contribuído para todo esse atraso”, avalia Carlos Silva Filho, coordenador jurídico da Abrelpe.
O advogado também lamenta que, enquanto a União Européia avança em legislação para responsabilizar cada vez mais a indústria pelo lixo que produz, o Brasil e a América Latina ainda estão empacados. Nenhum país da região tem legislação sólida sobre o assunto. “Aqui ainda se discute política, já na Europa estão observando uma produção livre de poluentes, buscando materiais alternativos e designs ambientalmente amigáveis”, diz.
Provável relator da proposta sobre resíduos sólidos no Congresso, o deputado federal Arnaldo Jardim (PPS/SP) trata da morosidade congressista na análise de uma legislação sobre lixo como uma dívida pública. Para ele, uma lei para o setor iria disciplinar, reduzir os efeitos e incentivar o reuso dos descartes nacionais. “Um grande entrave foi a polêmica da importação de pneus. Isso paralisou os debates sobre a questão maior dos resíduos sólidos”, diz o parlamentar que ajudou a traçar a política de resíduos para o estado de São Paulo.
Conforme o secretário de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do MMA Luciano Zica, as tratativas estão adiantadas para encaminhar uma proposta de lei sobre resíduos sólidos ao plenário do Congresso, ainda no primeiro semestre de 2008. “Já há no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) previsão de investimentos em saneamento básico e tratamento de lixo, mas falta um marco regulatório nacional sobre resíduos sólidos. Investimentos precisam de planejamento e continuidade”, diz.
Dinheiro de onde?
Com a aprovação de uma lei, o desafio será de onde tirar dinheiro para tratar um problema negligenciado por décadas. Uma avaliação ainda não publicada pelo MMA revela que, para resolver problema dos resíduos nas bacias dos rios São Francisco e Parnaíba (Maranhão, Piauí, Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe) seriam necessários R$ 390 milhões. O dinheiro viria da União, dos estados e de financiamentos. “Valor semelhante já deve ter sido investido, mas sem planejamento”, afirma Zica.
A alternativa em nível nacional, no entanto, parece passar pelo bolso da população. Do alto de seus cabelos brancos e quase 30 anos de trabalho no setor, o presidente da Abrelpe acredita que os custos de uma solução podem ser baixos se comparados a outras taxas já pagas pela população. Segundo Alberto Bianchini, cerca de R$ 30 anuais de cada brasileiro resolveriam o problema do lixo. Hoje no Brasil, 30 milhões de pessoas têm seu lixo recolhido por empresas que operam com concessões públicas.
O mercado é estimado em mais de R$ 6 bilhões. “Não é mais um imposto, é uma realidade. Sabemos quais são as soluções, mas falta dinheiro”, afirma. “Eu sempre fui a favor de uma taxa do lixo. Uma visão simplista vê isso como mais um imposto, mas esses recursos seriam destinados à limpeza pública e a programas de educação ambiental”, arremata o deputado Arnaldo Jardim.
O estudo completo da Abrelpe pode ser conferido neste atalho. Uma novidade na edição deste ano é uma análise do comércio de créditos de carbono no setor de resíduos. Vasculhando dados junto ao mercado do Mecanismo de Desenvolvimento limpo (MDL) do Protocolo de Quioto, verifica-se o domínio do Dióxido de Carbono (CO2) nos projetos brasileiros – 60% ligados à geração elétrica e pouco mais de 11% a aterros sanitários e manejo e tratamento de resíduos.
Além disso, levam ampla vantagem projetos de grande porte, predominantemente em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Mato Grosso.
(Aldem Bourscheit, O Eco, 12/03/08)