Ao povo, a Praça

Ao povo, a Praça

Da coluna de Sérgio da Costa Ramos (DC, 18/01/08)
Vivemos, no país e na cidade, um tal desapego e um tal desdém pela tradição – único processo social e mental que apazigua, acalenta e confere grandeza à transição entre gerações – que até as praças perderam o seu significado “conceitual”.
No Brasil, como em Floripa, por razões de “insegurança”, as praças passaram a ser sítios malvistos, logradouros que podem ser “observados” à distância, mas não “freqüentados”.
Uma praça é área urbana arborizada e ajardinada, equipada com bancos e passeios, coretos – até um chafariz, por que não? – tudo sob a verde benção de figueiras seculares, como a nossa.
Essa era a definição clássica de “praça”, recanto de paz e lazer, mas, também, “ponto de encontro”, reunião, “assembléia” entre os populares, como na antiga “Ágora” grega.
Em Floripa, a Praça XV foi tudo isso e muito mais. Ali se desatou, por quase um século, o espontâneo Carnaval de rua, espelho da alma desterrense. Ali desfilaram os corsos, os “Zé Pereiras”, trocaram-se “Limões de Cheiro”, organizaram-se os desfiles das primeiras Escolas de Samba e dos carros alegóricos e de mutações. Ave, Protegidos e Copa Lord, escolas pioneiras! Ave, Armandino Gonzaga e Avez-Vous, primeiros lordes do samba na praça!
Mais importante: ali se encontravam os mais criativos “Blocos de Sujo”, alguns exibindo um humor até refinado. Do “Enterro da Tristeza”, na quinta-feira precedente ao tríduo, até a quarta-feira de cinzas, com o “encontro” das orquestras do Lira e do Doze, sob a fronde da figueira – manhã já alta – a Praça XV era plenamente reconhecida como única e insubstituível capital do “Reino”.
O coração carnavalesco da praça pulsava sem parar e em suas artérias se sucediam os blocos, mascarados ou não, as bandinhas, os “one show man” ou “woman”, os Bororós – índios urbanos e assustadores – os bailes públicos e o “footing” incessante dos foliões em fantasias hilariantes, de crítica política ou de “costumes”. O Carnaval na Praça era um “hapenning”, um “acontecimento”, um evento aguardado e bem curtido.
Esse “bem cultural”, assim como os micos-leões dourados, está ameaçado de fulminante extinção. Aliás, esse Carnaval gozou de boa saúde até o final dos anos 1970, quando os desfiles oficiais ainda ocorriam nas imediações da Praça e do Mercado Público, com as escolas derramando sua “ópera” ao longo da Avenida Paulo Fontes. Depois que os desfiles foram desterrados para o “sambódromo”, o Carnaval se descaracterizou – talvez tenha ganho em novas e portentosas escolas de samba, mas terá perdido muito do seu lirismo e do seu charme.
O intrigante é que ambos – os desfiles oficiais e o Carnaval espontâneo da Praça XV – não são incompatíveis. Para que coexistam, basta um mínimo de bom-senso, associado a um bom projeto que estimule a sua revitalização e boa segurança. Ou seja: um projeto que mantenha os bailes públicos e o espetáculo dos “Sujos”, com segurança e civilidade. Basta que as autoridades retirem “os ovos debaixo do braço” e não confundam Carnaval com “preguiça”.
Recuperado o décor, a festa se reenergizaria gradualmente, contando com esse já precioso aditivo que é o Berbigão do Boca, uma tradição de apenas 16 anos, mas que já caiu na alma e nas graças do povo.
As autoridades devem à cidade a restituição do seu “ponto de encontro”. Para que o Carnaval recupere um certo lirismo, ainda notável no ano – nem tão jurássico assim – de 1967, quando pierrô e colombina se reencontraram ao som da marcha-rancho “Máscara Negra”:
“Tanto riso, oh, quanta alegria,/ Mais de mil palhaços no salão/ Arlequim está chorando pelo amor da Colombina, no meio da multidão”…
Em resumo: devolvam a Praça à multidão!