Afinal, por que a Ilha de Santa Catarina ainda não tem as marinas que merece?

Afinal, por que a Ilha de Santa Catarina ainda não tem as marinas que merece?

O nome dela é pronunciado em muitas rodas de conversa, quando o assunto é falta de marinas no litoral catarinense e em especial a Ilha que abriga o município de Florianópolis. A procuradora Analúcia Hartmann se surpreende quando ouve dizer que é apontada como um dos “entraves” ao desenvolvimento desses equipamentos náuticos.

Ela atribui essa imagem ao papel que o Ministério Público Federal teve que desempenhar, fiscalizando os órgãos fiscalizadores, suprindo a falta de clareza e detalhamento da legislação e enfrentando alguns empreendedores que, segundo ela, não agem profissionalmente.
“Mas a coisa está mudando.”

A procuradora atua nas áreas do meio ambiente, de povos indígenas e minorias do Ministério Público Federal em Santa Catarina e conversou com a Revista da Pesca, Navegação e Lazer, na última semana de Abril.

De que modo se pode construir marinas em Florianópolis?

O mesmo modo que se tem para construir marinas em qualquer lugar do mundo, que é o licenciamento ambiental e a autorização dos órgãos competentes. Na verdade, em Florianópolis, além do problema físico da ilha, de ter poucos locais abrigados, existe uma maneira de atuar pouco profissional por parte dos empreendedores do turismo. Normalmente, as marinas que são projetadas aqui, são projetadas prevendo graves danos ambientais. Ou então, quando os empreendedores descobrem que têm que fazer um estudo de impacto ambiental já desistem. Aí eles desistem e botam a culpa no ministério público, nos ecologistas, na chuva, no sol, em qualquer coisa. Mas é uma atitude muito pouco profissional.

Existem muitas ações contra projetos de marinas na Ilha de Santa Catarina?

Aqui no ministério público eu tenho uma ação em andamento, que está em negociação com a empresa Portobello. Trata-se do empreendimento Porto da Barra, que não é uma marina convencional, bem ao contrário, é uma marina única no mundo. A própria empresa não conseguiu qualquer outro exemplo de marina em canal de ligação entre uma laguna – porque a Lagoa da Conceição é uma laguna – e o mar aberto. Então, por conta disso, ela exige estudos ambientais bem mais aprofundados. Porque aí estamos diante de um sistema praticamente fechado, com muito pouca troca de água. Então tem que ter um cuidado muito maior.

A segunda ação envolvendo marina foi uma ação que já terminou, contra o grupo Habitasul. Eles previam uma marina também num ambiente fechado, com destruição de uma parcela imensa de manguezal, que é a unidade de conservação da Estação Ecológica (ESEC) Carijós. Alem de tudo, previam a utilização de um bem público, que é o manguezal que faz parte da ESEC Carijós. Então realmente era impossível. Até do ponto de vista natural ela era impossível porque previa escavações enormes naquela região de Ratones, onde realmente não existe calado. Acho que a própria empresa, mesmo que tivesse obtido as licenças e autorizações, não conseguiria fazer uma marina ali.

A senhora conhece outros projetos que tenham sido apresentados aos órgãos ambientais?

A Associação Comercial e Industrial de Florianópolis (Acif) trouxe uma vez um projeto que não era bem uma marina, era mais um píer, um grande píer na praia de Ingleses. Foi apresentado aqui e foi dito a eles que precisariam da autorização da União Federal, que é o normal, para qualquer equipamento náutico e precisariam de licenciamento ambiental. Na época isso também foi discutido dentro de uma questão maior que seria o engordamento da praia de Ingleses. Ingleses tem mesmo problemas bem sérios, de poluição, de desaparecimento da faixa de areia, etc. Aparentemente o canto sul de Ingleses seria abrigado o suficiente para uma marina, mas o próprio empreendimento do Costão do Santinho, que também falou em construir uma marina lá, nunca apresentou projeto. Nunca foi apresentado para os órgãos ambientais.

Os projetos de marinas devem ser licenciados pela Fatma ou pelo Ibama?

No Ministério Público Federal temos uma tese que licenciamento teria que ser feito pelo Ibama (o órgão federal) e não pela Fatma (estadual), pelo próprio domínio da União sobre o mar territorial, sobre a praia e também pelo que a gente chama de “impacto nacional”, que serio o impacto sobre o patrimônio nacional de zona costeira.

Mas a lei estadual de zona costeira é recentíssima, extremamente falha e lacunosa e tem um pequeno decreto de regulamentação. A lei federal, que é de 1988, já sofreu três regulamentações diferentes. A ultima é de 2004 e também é cheia de falhas. Então está faltando muito até para se dizer qual vai ser a gestão do litoral.

Agora, na adequação do Plano Diretor de Florianópolis, a Câmara de Vereadores poderia prever onde esse tipo de equipamento poderia ser construído. Isso seria o ideal: que se levasse em consideração a suportabilidade ambiental da ilha. Quantas marinas a Lagoa da Conceição suporta?

Ninguém sabe, porque a Fatma não faz esse levantamento, não dá esse tipo de dado, de informação, para a Câmara de Vereadores ou para a prefeitura. Quantas marinas são possíveis ou quais são os ambientes abrigados no norte, no leste, no sul da ilha para esse tipo de equipamento?

É preciso verificar se isso é compatível também com os outros usos que se faz: população de pescadores tradicionais, maricultura, etc. Nós já tivemos alguns embates sérios entre pescadores artesanais e maricultores. Pelo próprio uso da praia, que tem que conciliar uso de lazer, uso de embarcações profissionais, embarcações de recreio, etc.

Então tudo isso tem que ser planejado. O que falta realmente aqui na ilha é planejamento. Senão, a gente não veria essa destruição que está vendo.

Mas não existe uma posição contrária às marinas, para evitar sua construção?

Não, muito ao contrario. Nós temos estudado bastante e inclusive o Ministério Público Federal tem encomendado alguns trabalhos em cima da legislação e de exemplos de outros paises. O que está muito na moda agora no Brasil é estudar o que existe na Austrália e o que existe na Espanha. Na verdade a legislação espanhola é um pouco uma copia da legislação francesa. Só que todos esses países que têm uma costa para o Mediterrâneo estão reestudando isso. Existe uma comissão que eu gosto de chamar de “Salvação do Mediterrâneo”, porque o mar Mediterrâneo está tão poluído que mereceu uma comissão, dos vários países que ele banha, numa tentativa de solução do problema. E nessas tentativas, muitas marinas foram destruídas e outras foram construídas a partir de um novo modelo.

Então, modelos existem e muita tecnologia já foi desenvolvida, mas aí é que está, o que a gente exige no ministério público é seriedade. Que seja realmente a melhor tecnologia, a melhor opção, o melhor local. Raramente a gente encontra um projeto – e não só de marina, mas de qualquer empreendimento – em que haja alternativas locacionais. Então essas alternativas deveriam ser dadas pela legislação, pelo que a gente chama de gerenciamento costeiro.

Como é feito esse gerenciamento?

Hoje a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Sustentável, do governo de Santa Catarina faz um trabalho a passos lentíssimos, porque a secretaria tem só um servidor trabalhando nisso. O litoral catarinense está sendo estudado por um único funcionário. Com a ajuda da UFSC, da Univali, da Unisul, etc. Mas um só funcionário para tentar imaginar qual seria o tipo de desenvolvimento sustentável para a zona costeira catarinense é realmente pedir milagre. Não dá para acontecer.

Como conciliar desenvolvimento e meio ambiente?

O ideal é que em vez de procurar briga tentar passar qualquer coisa e construir qualquer coisa, que se procurasse ajudar o governo do estado e os municípios a fazer alguma coisa que seja realmente boa pra todo mundo e para o futuro. Que não seja uma coisa só para o lucro imediato. Uma exploração sustentada mesmo, no sentido de aproveitamento hoje e manutenção, para o futuro, dos mesmos recursos naturais.

E tem que pensar nessa concertação entre poderes e população. Porque é muito difícil imaginar desenvolvimento sustentável e miséria. E na verdade esses equipamentos turísticos que não levam em consideração a população tradicional acabam gerando bolsões de miséria que inviabilizam o turismo de qualidade, criando um círculo vicioso.

Quais são as principais dificuldades para planejar o desenvolvimento?

Tem um problema grave aqui em Florianópolis, que é comum no Brasil inteiro. Não é comum em países desenvolvidos. Normalmente nos países desenvolvidos, nos grandes planejamentos territoriais já estão indicados os locais em que esse tipo de equipamento pode ser feito. Em Florianópolis isso não existe. Então, cada vez que o empreendedor quer construir, ele tem que passar por uma discussão no legislativo. Isso é totalmente inadequado.

A lei não é pessoal, a lei não pode ser feita para este ou aquele empreendimento, a lei tem que ser feita para a sociedade inteira. Então esses espaços, que são espaços públicos, poderiam até passar por um sistema de licitação. Para encontrar o empreendedor que tem o melhor projeto, o poder público poderia construir esse tipo de equipamento, loca-lo, arrenda-lo ou fazer a própria gestão. Maneiras existem muitas.

Agora, realmente, marina é um equipamento que, se é pra fazer bem feito, é caro. Então depende de estudos, depende de uma concertação desse tipo.

Não tenho muita esperança nesse tipo de discussão na Câmara de Vereadores. A partir do momento em que a Câmara começa a dizer assim “ah, marina aqui não, porque o interesse é do empreendedor fulano de tal lá”, a gente pode perder toda a esperança que a coisa vá funcionar. Personalizam o que deveria ser – e é – público.

Um planejamento prévio deveria definir quais são os locais mais abrigados, mais propícios para o desenvolvimento de equipamentos náuticos. E aí não interessa se o grupo tal tem seus empreendimentos do outro lado da ilha. Não interessa. Ou se muda, ou outro grupo pega ali. Isso é que deveria nortear.

Mas o que eu vejo é o que o desenvolvimento da Ilha está gerando um Frankenstein: cada um vai puxando para um lado, para outro, vai se colocando pólos geradores de novas populações, de novos empreendimentos, de um lado ou do outro da ilha sem um empreendimento global. E aí fica bem complicado. Realmente acaba inviabilizando qualquer coisa séria.

Por que alguns empresários dizem que o minstério público quer impedir o progresso, quer parar com tudo?

Acho que esse mito vem daí, de que o ministério público, num primeiro momento, foi à única voz da sociedade a exigir seriedade e os estudos ambientais. Infelizmente acabamos fazendo o que os órgãos ambientais deveriam ter feito. Até hoje tem muito advogado que usa esse chavão, que eu acho absurdo, “ah, mas o ministério público não é órgão licenciador”. Não é e nem quer ser. O que nós estamos fazendo é fiscalizar os órgãos licenciadores e infelizmente a gente acaba descobrindo erros grotescos. E aí é que se cria todo esse passivo ambiental.

E ainda se dissessem, “o ministério público cria problemas, condições, requisitos, enquanto que nós empresários estamos fazendo um desenvolvimento belíssimo sem danos”. Não é isso que a gente está vendo. A gente está vendo ano após ano aumentar o número de praias poluídas na ilha, ano após ano aumentarem as ocupações clandestinas, os bolsões de miséria. Essa gestão “de qualquer jeito” não esta dando um bom resultado. Acho que estava na hora das pessoas terem consciência, empresários e população em geral e dizer “não, pêra aí, não é por aí, temos que pensar um pouco melhor”.

Mas isso tem mudado muito. A gente já encontra empreendedores que têm vindo discutir, que querem discutir. Hoje em dia já existem empresas serias que fazem estudos ambientais. No início da legislação também havia muita confusão. Havia muitas empresas que na verdade eram empresas fachada, que faziam estudos ambientais formais e que não diziam nada, então teve um primeiro embate muito forte.

Ainda há preconceito quanto aos estudos de impacto ambiental?

Existe uma certa parte do empresariado, não diria que é a maioria, bem ao contrário, que quer sempre o lucro sem nenhuma despesa. Então, para esse tipo de empresário é só falar em estudo ambiental que já se arrepiam. Já acham muito complicado… não conseguem nem imaginar que esse estudo ambiental na verdade cria uma segurança para eles mesmos. Isso é muito forte nos países desenvolvidos, a questão das indenizações por danos ambientais. A população brasileira ainda não tem essa formação de cidadania de ir buscar, vamos dizer, essa empresa destruiu toda nossa paisagem, nosso modo de vida, vai ter que pagar por isso. Isso nos países desenvolvidos já é comum. Então as empresas têm o maior cuidado. Elas mesmas procuram fazer os estudos mais completos possíveis para se precaver, para diminuir o impacto. Porque impacto sempre vai haver, agora tem que ver o que é um impacto razoável e o que não é mais razoável se exigir da população.

Como se tem discutido agora com essa questão de água, que é um problema sério na ilha de Santa Catarina também. E também não adianta ficar pensando em milagres, do tipo “vamos buscar água do rio Tijucas”. O rio Tijucas já virou manancial de todo mundo. Todas as cidades da região têm que depender de um único rio, com um custo elevadíssimo público para limpar a água desse rio, para torná-la potável, pra trazer até a ilha de Santa Catarina, etc. Então tem que pensar se isso é razoável. Os recursos naturais não são infinitos, a gente tem que pensar bem.

É preciso investir em planejamento na ilha e no estado de Santa Catarina, que tem uma costa notável, não só bonita, mas com recursos naturais fantásticos, que poderia ser bem gerida. Mas aí tem que deixar de lado o lucro imediato e pensar mais no planejamento a médio e longo prazos.
(Revista da Pesca, nº12, Maio/2006)