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Nossas autoridades de segurança e mesmo as outras de vez em quando falam na tal de “tolerância zero”, política que reduziu a criminalidade em Nova Iorque. Como nossas autoridades não são chegadas ao estudo, em geral são monoglotas e acham que dá para aprender sobre processos complexos apenas fazendo uma visita de alguns dias (como foi o caso da Colômbia), fiquei sem saber, afinal, o que era mesmo a tal “tolerância zero”.

Até que esta semana, por acaso, num livro que estava lendo, encontrei um bom relato sobre alguns aspectos da experiência noviorquina e pude, finalmente, começar a entender.

Crime como epidemia

Estava lendo o The Tipping Point, do Malcolm Gladwell (Little Brown, 2000), mais interessado nos aspectos relacionados com a comunicação. Ele discute o que faz algumas idéias ou produtos virarem mania. O que leva uma coisa a se disseminar como se fosse um vírus, fazendo livros virarem bestsellers, produtos esgotarem nas prateleiras e as pessoas agirem de determinada forma.

[Clique aqui para visitar o site do livro (em inglês).]

E a certa altura ele fala no caso de Nova Iorque. Afinal, nos anos 80, os índices de violência e criminalidade atingiram proporções epidêmicas. Por ano, cerca de 2 mil assassinatos e 600 mil registros de ocorrências graves.

No metrô, a situação era caótica. Os trens, totalmente pichados, por dentro e por fora, sujos, atrasavam regularmente. Em 1984 havia uma pane séria no sistema de metrô todos os dias. Incêndios e descarrilamentos eram comuns. Coisa de semana sim, outra também. Nesse ano eram seis mil vagões pichados (como estes das fotos), em praticamente todas as linhas.

Pular a catraca virou esporte nacional. Ninguém mais pagava o metrô. A companhia de tráfego calculou as perdas anuais em cerca de R$ 150 milhões, só com a malandragem viajando sem pagar. Em algumas estações, os espertos estragavam a maquineta onde se devia colocar a ficha para entrar no metrô e ficavam, numa das catracas abertas, “cobrando” a entrada. O cidadão de bem não tinha outra saída, a não ser entregar a ficha pro espertalhão e entrar sem rodar a catraca.

Os registros de assaltos, agressões e outros crimes no metrô chegaram, no final da década, a 20 mil por ano. Andar de metrô em Nova Iorque era uma aventura arriscada.

Esta era a situação, classificada como “a pior epidemia de crimes da história da cidade”. O inferno parecia não ter fim e a criminalidade crescia ano a ano até 1990, quando começou a decrescer vertiginosamente.

Por que?

O que teria acontecido? Não houve um transplante de população. Ninguém saiu de casa em casa ensinando os potenciais delinquentes o que era certo ou errado. Havia, no início dos anos 90, o mesmo número de tarados, criminosos, gente com todo tipo de distúrbio psicológico que durante os anos 80. O que teria levado essa gente a de repente parar de cometer crimes?

A resposta, acha Gladwell, está no que ele chama de “poder do contexto”. As epidemias são sensíveis às condições e circunstâncias do tempo e do espaço em que elas ocorrem.

Nos anos 90 o crime, em todo os Estados Unidos decresceu por vários motivos, incluindo uma recuperação da economia. Mas Nova Iorque, nessa mesma época, continuava estagnada. E apesar de todos os fatores contrários, a redução da criminalidade foi maior e mais rápida que no resto do país.

Janela quebrada

Uma das candidatas mais sérias a explicar a queda da criminalidade em Nova Iorque é a “teoria da janela quebrada”. Ela foi formulada pelos criminologistas James Q. Wilson e George Kelling e em resumo diz o seguinte: o crime é o resultado inevitável da desordem.

Se uma janela é quebrada e ninguém a conserta, os passantes vão concluir que ninguém se importa com aquilo e que não tem ninguém cuidando dali. Em pouco tempo, mais janelas serão quebradas e o sentimento de anarquia vai se espalhar do edifício para a rua em frente, enviando um sinal claro de que vale tudo. Verdadeiros convites para crimes mais sérios.

Ahá, começamos aí a entrar nas raízes da tal história de “tolerância zero”.

Wilson e Kelling dizem que trombadinhas e batedores de carteiras sentem-se mais à vontade para “trabalhar” em ruas ou bairros onde a população já esteja intimidada pelas condições de pouca segurança. Sabem que o transeunte que for roubado não terá ânimo, nem coragem, de chamar a polícia, muito menos de identificar quem o roubou. E sequer pensará em interferir, quando vir alguém sendo roubado.

O crime, portanto, é contagioso. Pode começar com uma janela quebrada e se espalhar pela cidade inteira.

A limpeza do metrô

Na metade dos anos 80, Kelling foi contratado pelo departamento de Trânsito de Nova Iorque como consultor. E começou a pressionar para que a teoria da janela quebrada fosse posta em prática. Isso começou a se tornar possível quando um novo diretor, David Gunn, foi encarregado de administrar uma reconstrução bilionária do sistema de metrô.

Muita gente, na época, achava que as pichações eram o menor dos problemas e que não valia a pena perder tempo com isso. Seria como se, no Titanic indo a pique, alguém resolvesse lavar o convés. Mas Gunn insistiu que “as pichações (os graffiti) são o símbolo do colapso do sistema”. Sem vencer a batalha das pichações, acreditava ele, todas as reformas e mudanças passariam em branco, como se nunca tivessem acontecido.

Teimosia

Eles começaram limpando um carro do metrô depois do outro. Nos de aço inoxidável, usavam solventes, nos que eram pintados, pintavam por cima da sujeira. E depois que um carro tinha sido recuperado, cuidavam para que não fosse novamente pichado. Eles montaram, em finais de linha, “centrais de limpeza”. Se um carro chegasse ali com uma pichação, não voltaria a transitar antes de ser limpo.

Eles levaram seis anos (de 1984 a 1990), para limpar todos os carros. Fico imaginando, aqui nesta nossa terrinha abençoada, uma ação de governo do tipo desta, sendo mantida por tanto tempo.

Exemplo

O segundo estágio da recuperação do sistema de metrô começou com a entrada de William Bratton como chefe da polícia do departamento de trânsito. Discípulo da teoria da janela quebrada e de Kelling, Bratton encontrou uma maneira criativa para combater os crimes cometidos no metrô, a começar pela falta de pagamento da passagem.

Não parecia produtivo prender aqueles que pulavam a catraca, porque para levá-los à delegacia perdiam quase o dia todo e o sujeito estaria solto logo.

Em algumas estações, Bratton colocou policiais a paisana (no mínimo dez em cada equipe), prendendo os malandros um a um. O sujeito passou sem pagar, era preso. A “turma” era algemada uns nos outros e deixada ali mesmo, na estação, à vista de todos, até ter uma penca numerosa.

Os usuários, ao ver aquilo, recebiam uma mensagem clara: alguma coisa está sendo feita. Um velho ônibus foi transformado em delegacia móvel e ia a cada uma das estações onde tivesse uma penca, para registrar as ocorrências e checar a ficha de cada um. Mesmo que dali a pouco os malandros estivessem livres, sentiram que o ambiente estava mudando. As coisas já não eram assim tão fáceis.

Entre aqueles presos por pular a catraca, a polícia descobriu que um em cada sete, em média, tinha um mandado de prisão por um crime anterior. Um em cada 20, estava armado.

Esta prática durou de 1990 a 1994. Mas a polícia do departamento manteve o foco nas pequenas infrações, prestando atenção nos detalhes do dia-a-dia do metrô.

Com a eleição do prefeito Rudolph Giuliani, em 1994, Bratton foi nomeado chefe de polícia da cidade. E usou, no restante da cidade, as mesmas estratégias que tinha aplicado, com sucesso, no metrô.

Lavadores de parabrisas nos cruzamentos (sim eles também tinham isso), gente que mijava na rua, bêbados arruaceiros, garrafas jogadas na rua, nenhum delito era pequeno demais para a polícia. Sem o ambiente propício, sem janelas quebradas, o que parecia incontrolável começou a entrar nos eixos e assumir dimensões menos assustadoras.

(Cézar Valente, Artigo, 11/04/2007)

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